Página inicial > Antiguidade > Neoplatonismo (245-529 dC) > Aubry - Tratado 53 (I, 1): apresentação temática

Aubry - Tratado 53 (I, 1): apresentação temática

domingo 20 de fevereiro de 2022, por Cardoso de Castro

  

O Tratado 53 foi posto por Porfírio   no início das Enéadas  ; no entanto é o penúltimo que Plotino compôs. Pode ser surpreendente que a ordem didática vá assim ao inverso da ordem cronológica. A razão é no entanto legível desde as primeiras linhas do texto: este é com efeito tecido de reminiscências do Primeiro Alcibíades  ; assim como ele é regido pelo preceito "conhece-te a ti mesmo". Logos reveste a mesma função: assim como, no cursus de estudo neoplatônico, o Primeiro Alcibíades figurava de introdução à obra de Platão  , da mesma maneira o Tratado 53 representa o preâmbulo às Enéadas. Não constitui somente uma introdução aos tratados éticos agrupados por Porfírio na Primeira Enéada, mas à obra inteira de Plotino.


A questão diretora do Primeiro Alcibíades é aquela da essência do homem. O preceito délfico é interpretado como uma exortação não tanto ao conhecimento de si senão àquela do si em si; ou ainda: o conhecimento de si não é possível senão enquanto tem por objeto a essência na qual a individualidade se anula ao mesmo tempo que a identidade é fundada. Ao contrário em Plotino (o que causa estranheza no Tratado 53). Sem dúvida Porfírio retoma, em seu título, a questão platônica "o que é o homem? ". Mas este título é infiel à démarche platônica. Pois Plotino não demanda "o que é o homem?", mas "que somos nós?". Mais ainda: ele dá a esta última questão uma virada reflexiva; desde o §1, depois de ser interrogado sobre o assunto das diferentes faculdades, ele perseguia: "isto mesmo que investiga, que examina e lança estas questões, que pode ser ele?" (1, 9-11).

Aqui o tratado desprende-se do De anima de Aristóteles   e do Primeiro Alcibíades, se engajando em uma via radicalmente inexplorada: o sujeito no sentido clássico do termo — a substância, o sujeito de atribuição — um sujeito moderno, dotado de consciência e de reflexividade. Não se trata mais de decidir se o homem é alma, corpo, ou mistura da alma e do corpo. Trata-se, escreve Plotino, de se interrogar sobre isto mesmo que conduz esta investigação: o sujeito filosofante se toma ele mesmo por objeto de investigação. A conversão não somente à interiorização, mas à consciência: e esta consciência se dá sob a forma de reflexividade imediata.

Está aí a novidade: sabe-se com efeito que em Platão como em Aristóteles, a reflexividade não se dá senão como mediada. No Primeiro Alcibíades duplamente: primeiro pela relação inter-humana, tal qual ela se encarna, em particular na estrutura dialógica; em seguida, pelo "melhor e o mais divino na alma" descoberto através desta. Assim não tenho acesso a mim mesmo senão pelo intermediários de um outro que eu, e o que descubro assim fazendo, não sou eu (como pessoa singular, irredutível à qualquer outro), mas o outro em mim: esta essência que me excede, este impessoal que nos é comum, ao outro e a mim.

Da mesma forma em Aristóteles; a consciência aristotélica não se dá a princípio senão como uma consciência de objeto, e não é consciência de si senão indiretamente: é na ocasião da percepção de um objeto singular que percebemos que percebemos. Ao senso comum revém a dupla tarefa de unificar as sensações em um mesmo objeto, e de reportar este objeto ao sujeito sentidor. O acesso à interioridade é portanto mediada pela exterioridade, condicionada pela percepção atual. Aditemos que o sujeito que se percebe assim é o sujeito sensível e sentidor: a consciência não se dá a princípio senão como uma faculdade da alma encarnada, imanente ao corpo e como a unidade dos diferentes sentidos. O sujeito da consciência, em suma, é o corpo vivente.

A figura plotiniana da reflexividade, tal qual se apresenta no Tratado 53, se distingue tanto das figuras platônicas e aristotélicas quanto da figura cartesiana: o sujeito filosofante toma por objeto de investigação sua própria atividade de pensamento. Ele tem portanto um acesso imediato a esta, independente da relação inter-subjetiva, como da percepção externa. No entanto, esta apreensão imediata do sujeito pensante por ele mesmo não é nem última, nem fundadora: se refletindo ao tempo de refletir, o sujeito plotiniano não apreende sua essência, mas sua distância desta. Não descobre que pensa, mas simplesmente que pode pensar. O que apreende assim não é uma identidade atual mas uma identidade possível, excedentária e irrealizável. A consciência lhe revela que não é ainda adequado a sua essência, idêntica à alma superior e separada, que, ela, é ato puro de pensamento. Também o sujeito plotiniano não se apreende como uma substância, mas como um movimento: não é definido senão pelas atividade cognitivas que supõem a colocação em relação do sensível com o inteligível, e ultimamente, a "reminiscência". compreendida ao mesmo tempo como tomada de consciência e como atualização do inteligível. O sujeito plotiniano não é nada mais finalmente que este movimento pelo qual, tomando consciência do inteligível em si, descobre que ele é, essencialmente, inteligência, e se esforça por abolir sua distância de sua essência em se identificando à alma separada.


O sujeito que surge ao final do Tratado 53 e no limiar das Enéadas parece ser, sobretudo, o tema da ética: não admite determinação ontológica (uma vez que não é uma substância, mas uma situação, intermediária entre duas substâncias, uma das quais define sua essência), mas apenas uma caracterização funcional; isso, desenvolvido gradualmente durante o curso do tratado, acabou por designá-lo não como consciência, mas como um princípio de orientação da consciência em relação a uma ou outra das substâncias que constituem sua identidade potencial. O sujeito plotiniano aparece menos como isto que se conhece que como isto se escolhe a si mesmo: a análise reflexiva, o exame das faculdades, não se resolve na posição de uma consciência unificadora, mas, pelo contrário, de um princípio de separação; ao final desta análise, o sujeito não se descobre como isto que tem consciência que sente, opina, reflete e pensa, mas como o que deve escolher orientar sua consciência para tal ou tal destas atividades, à exclusão de outras.

Assim se verifica que a pergunta plotiniana "quem somos nós?" Não se reduz à questão platônica "o que é o homem?": somos isto que é responsável de nossa humanidade; isto que pode realizá-la ou perdê-la, segundo escolhamos ser consciente de (e, portanto, nos identificarmos a) o animal ou a alma separada. A humanidade, portanto, admite uma dupla caracterização, uma essencial e mediada, a outra imediata e funcional: pode-se dizer, sem dúvida, que "o homem, é a alma", na condição de compreender que esta essência, por um lado, é excedente (se a alma é o divino em nós) e, por outro lado, não se dá a princípio senão como uma identidade possível cuja atualização está suspensa a um ato de liberdade. Nós somos isto que tem consciência desta essência excedente tanto quanto de sua degradação, e somos humanos na medida em que escolhemos nos identificar com este excesso.

O preceito délfico vale, portanto, em última análise, como uma injunção, não tanto a se conhecer si mesmo como a se tornar si mesmo: não se trata somente de se saber alma, mas de se escolher como tal. Mais precisamente, o momento epistêmico só vale como um prelúdio ao momento prático: o trabalho reflexivo de análise das faculdades não revela nossa unidade, mas nossa multiplicidade; não nos descobre nossa essência, mas nossa distância para esta. No entanto, a descoberta desta distância desencadeia o movimento que visa reduzi-la: descobrindo que pensamos pensar (e que somos essencialmente isto que em nós pensa), também descobrimos que a identificação ao animal, se é espontânea, não é necessária. Por aí, podemos começar a nos desapegar do animal em nós. Eis porque o trabalho de análise levado pelo Tratado 53 é indissociável do trabalho da virtude.

Assim, na medida em que o si não é imediato, onde não se confunde com o nós mas não é para ele senão um possível, o "conhece-te ti mesmo" vale como uma injunção a reduzir a distância entre o nós e o si. Ele se deixa decompor em dois momentos: o primeiro, negativo - "saiba que não és isto que crês ser" -, e o segundo, positivo - "ensaie devir o que és".