Desde que começamos a avaliar a prática, percebemos que o ator comum, moderno ou não, pronuncia exatamente as mesmas palavras dos negros da Costa e dos adeptos do candomblé, na companhia dos quais iniciei esta pequena reflexão. O ator comum afirma, diretamente, aquilo que é a evidência mesmo, a saber, que ele é ligeiramente superado por aquilo que construiu. "Somos manipulados por forças que nos superam", ele poderia dizer, cansado de ser sacudido de todos os lados e de ser acusado de ingenuidade. "Pouco importa se as chamamos divindades, genes, neurônios, economias, sociedades ou emoções. Nós nos enganamos talvez sobre a palavra que designaria tais forças, mas não sobre o fato que elas são mais importantes do que nós." O ator comum poderia continuar a dizer, ao contrário, "temos razão em dizer que fabricamos nossos fetiches, já que estamos na origem dessas forças diversas das quais vocês querem nos privar , nos fazendo de marionetes manipuladas pelas forças do mercado , da evolução, da sociedade ou do intelecto . Talvez nos enganemos sobre o nome a ser dado à nossa liberdade, mas não sobre o fato que agimos de acordo com outros, que os chamemos divindades ou aliens. O que fabricamos jamais possui ou perde sua autonomia ".
A palavra "fetiche" e a palavra "fato" possuem a mesma etimologia ambígua - ambígua para os portugueses como para os filósofos das ciências. Mas cada uma das palavras insiste simetricamente sobre a nuance inversa da outra. A palavra "fato" parece remeter à realidade exterior, a palavra "fetiche" às crenças absurdas [45] do sujeito . Todas as duas dissimulam, na profundeza de suas raízes latinas, o trabalho intenso de construção que permite a verdade dos fatos como a dos espíritos. É esta verdade que precisamos distinguir , sem acreditar, nem nas elucubrações de um sujeito psicológico saturado de devaneios, nem na existência exterior de objetos frios e a-históricos que cairiam nos laboratórios como do céu. Sem acreditar, tampouco, na crença ingênua. Ao juntar as duas fontes etimológicas, chamaremos fe(i)tiche a firme certeza que permite à prática passar à ação, sem jamais acreditar na diferença entre construção e compilação, imanência e transcendência. [1]
Tão logo começamos assim a considerar a prática, sem mais nos preocuparmos em escolher entre construção e verdade, todas as atividades humanas, e não somente aquelas dos adeptos do candomblé ou dos cientistas de laboratório, começam a falar sobre o mesmo passe, sobre o mesmo fe(i)tiche. Os romancistas não dizem também que são "levados por seus personagens"? Nós os acusamos, é verdade, de má fé, submetendo-os primeiramente à questão: "Vocês fabricam seus livros? Vocês são fabricados por eles?" E eles respondem, obstinadamente, como os negros e como Pasteur, através de uma de suas admiráveis fórmulas, cujo sentido corre sempre o risco de ser perdido: "Somos os fios de nossas obras". E que não venham nos dizer que eles estão se valendo da dialética, e que o sujeito, ao se autoposicionar no objeto, revela a si próprio, alienando-se através dele, pois os artistas, ao zombarem do sujeito assim como do objeto, passam justamente entre os dois , sem tocar, em nenhum momento, nem o sujeito, senhor de seus pensamentos, nem o objeto alienante. [2] Todos aqueles que se sentaram na frente de um teclado de computador, sabem que tais romancistas tinham consciência do que pensavam sobre aquilo que estavam escrevendo, mas que não se pode, por isso, confundi-los em um jogo de linguagem ou imaginar que um Zeitgeist lhes diria o que escrever à sua própria revelia, pela excelente razão que esses manipuladores de segunda categoria não teriam maior controle sobre tal Zeitgeist do que o autor possui sobre o texto. Experiência banal, tornada incompreensível pela dupla suspeita da crítica e remetida, por esta razão, ao meio-silêncio da "simples prática".