Por vezes o pensamento se aconchegou ao conceito de que muito acima do particularismo ciumento e excludente das coisas finitas se elevaria o princípio imparcial e majestático do Ser. O Ser seria a justiça por sobre a injustiça cavilosa e mal-querente dos entes individuais. O Ser seria efusão e não infusão. Uma vontade que se quisesse unicamente a si mesma, uma paixão de si, não seria qualidade atribuível ao fundo secreto das coisas. Não poderíamos, entretanto, abandonando uma certa representação moralizante do Ser, pensá-lo também como Ser-para-si, como um querer-si-mesmo, como Ser in-fusivo ou, como diria Hegel, “um todo refletido em si mesmo ”? Com efeito, eis como o grande filósofo define a norma de uma tal realidade: – “o Ser-para-si mantém um comportamento polêmico e negativo em relação ao outro limitante e através dessa Negação constitui-se num todo refletido em si mesmo”. Existe, portanto, nessa modalidade de ser um infinito impulso de superação da alteridade , uma intro-versão do outro, uma atração de tudo para o seu próprio campo . Discutindo esse tema alude Hegel à monadologia de Leibniz , na qual comparece cada mônada como um exemplo desse ser-para-si mesmo. Nesse sistema, a alteridade é superada. Se cada mônada constitui uma força de representação autônoma e negadora [121] da alteridade, Leibniz vê-se compelido a mitigar a introvertência desses pontos metafísicos para explicar a harmonia das representações existentes entre as diversas mônadas. E ao ser-para-si da consciência representativa deve-se adicionar a ideia de uma Mônada Monadorum. De um modo absoluto, na unidade sobrecolhedora do ser-para-si, o Outro só pode se manifestar como “outro superado”, como outro negado, como o momento já assimilado e transformado no interior de uma realidade fechada. A capacidade interna de negação de um modo refletido em-si-mesmo deve ser infinita e ilimitada. Qualquer limite ou alteridade é imediatamente ultrapassado e transformado na própria norma inerente ao sistema e, em consequência, posto em relação com a unidade fechada em si mesma.
Podemos relacionar essas ideias da Lógica com uma passagem da Fenomenologia onde Hegel estuda a construção do mundo físico. O projeto instituidor de um universo de forças naturais não significa uma relação da consciência com o mundo já pronto e do qual ela seria uma simples cópia. O conhecimento é criador e põe unicamente fora de si o seu próprio esboço do mundo, exteriorizando-o num cosmo: “No processo de explicação da consciência encontramo-la justamente numa enorme satisfação de si mesma, porque a consciência, por assim dizer, está em colóquio imediato consigo mesma e frui a sua própria realidade; à primeira vista parece que está em relação com algo de diverso, mas de fato ela está consagrada a si mesma e consigo mesma ocupada”. A exterioridade do mundo é simplesmente uma cisão ou duplicação do igual, da consciência, ou melhor, da nossa consciência que se objetiva e se distingue de si mesma. Essa exterioridade do Universo é, portanto, uma interioridade que se desconhece a si mesma, uma interioridade invertida e posta diante de nós, um desdobramento da interioridade da consciência. Segundo a linguagem característica de Hegel, quando levantamos o véu que encobre esses fenômenos e procuramos observar o que constitui o interior das coisas, essa observação se transforma naquele ato “pelo qual o Interior olha para o Interior”. O mundo objetivo, [122] as leis objetivas dos fenômenos são delineadas pelo nosso próprio espírito, constituindo aquela alteridade superável, aquela diversidade negada e interiorizada que agora se apresenta na figura de um compreensível e dominado. No fundo, a representação das coisas é uma fase da autorrepresentação do sujeito , um olhar para si mesmo no espelho do mundo, espelho que segundo Nietzsche nos devolve sempre a nossa própria imagem. O “fora” do mundo é portanto um “dentro”, um “dentro” que se esqueceu a si mesmo e se põe como um “fora” independente. É justamente esse autoestranhamento que constitui a ideia de uma natureza, de uma representação natural ística do Universo, da sociedade e da cultura. Perdemos de vista que o conhecimento de uma alteridade natural, seja ela de natureza física ou social, é um aspecto da “interioridade” à qual pertencemos, uma afirmação de nós mesmos no outro.
Um exemplo marcante de uma Unidade interna e refletida em si mesma é a ideia de Mundo, elaborada por Heidegger . Nessa linha de pensamento, o conceito de humano não denota um conjunto numerável ou inumerável de coisas ou entes, ou um espaço finito ou infinito onde essas coisas possam existir. O mundo é para Heidegger aquele horizonte projetivo, aquela “abertura ” (Offenheit), onde as coisas podem se manifestar. Mas as coisas só se podem manifestar enquanto descobertas ou abertas pelo projeto de um mundo. Para as coisas intramundanas vale o adágio escolástico: non iluminat nisi iluminata. [1] Portanto, para que o ente oferecido se ofereça à nossa consciência é mister uma iluminação que desenhe e ponha a descoberto o manifestável. Iluminar, projetar ou descobrir são conceitos análogos que designam justamente o que Heidegger denomina a fundação do mundo. Vemos, portanto, que o conceito de mundo é transcendente a todos os entes intramundanos, é um puro ímpeto que inaugura o reino do manifestado e que se identifica com esse “abrir”. Em seu livro sobre Kant , Heidegger nos mostra como esse horizonte unitário do mundo é uma Unidade unificante, um sistema unitário [123] de relações, que só permite que se manifeste o que se compagina com o conjunto do oferecido. A unidade do todo é anterior e condicionadora da parte e a própria parte é o todo numa espécie de concentração pontual. O ente é projetado em seu conjunto e esse conjunto é uma interioridade, um Fürsichsein, um Ser-para-si, uma negação projetiva da alteridade. A interioridade unitiva do mundo une, ao reduzir o diverso à sua própria pauta, ao ver-se a si mesma em todas as coisas, ao aplicar a tudo as suas próprias medidas interpretativas. Em consequência, o mundo é uma unidade interna de relações que só liberta o que se mostra relacionado com o conjunto. Isso se dá no processo infinito de unificação que vai reduzindo o não unificado ao unificado, que vai superando e pondo à disposição um ente homogêneo e concordante com o sistema total.
A interioridade do mundo existe na modalidade do Ser-para-si e mantém, portanto, segundo as palavras de Hegel, “uma atitude polêmica e negadora contra qualquer alteridade limitante”. O outro só se pode manifestar nesse Ser-refletido-em-si-mesmo como outro-superado, como Aufgehobene andere [2], e esse outro-superado nada mais é do que o ente descoberto segundo a luz do mundo em questão. Essa luz é uma iluminação para dentro, uma luz polêmica, uma luz que ao iluminar, escurece e que ao descobrir, oculta. O oculto é negado e suplantado pelo poder ciumento dessa luz, dessa Fascinação que alça um determinado mundo sobre os escombros de uma iluminação anterior. O mundo é a vitória de um princípio com a exclusão de todos os demais, é o domínio de uma interioridade, como na sequência das gerações divinas da Teogonia de Hesíodo. Mas o símile vai mais longe e é mais que um símile; é uma descrição da forma original do acontecer.
A Fascinação instituidora do mundo se expressa no poder próprio da mitologia. O Ser-para-si dá luz própria ao mito , é um fenômeno que se manifesta sempre como escolha do mundo, como abertura de uma esfera de possibilidades historiáveis. [124] Aquilo de que não nos damos conta é que nós, homens, na singularidade de nossas características e de nossos poderes, também representamos algo de subordinado a uma interioridade mítica, ou ainda, pertencemos também à progenitura de uma geração divina. A nossa maneira de ver as coisas, a imagem que possuímos das coisas e de nós mesmos é condicionada em tudo e por tudo pela figura específica do universo ao qual pertencemos. O “fora” que examinamos é, no fundo, um “dentro”; a objetividade com a qual concordam os enunciados do nosso conhecimento representa uma esfera previamente “aberta” pela luz do mito. O ente não pode vir a nós e iluminar a nossa consciência cognitiva se não previamente iluminado, isto é, descoberto e projetado por uma transcendência divina. Já tivemos ocasião de demonstrar como a representação do universo físico, regido por leis universais , pode ser deduzida das premissas da concepção cristã da vida. Só pode existir uma natureza enquanto natureza dentro da experiência própria da revelação cristã. A independência da natureza, em toda a sua extensão e infinitude, é também nesse caso um “dentro”, expressando o fechamento de um mitologema, a escolha exclusiva de uma certa representação das coisas, concordante com as finalidades supremas delineadas pela imaginação prototípica.