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Safranski (S:35-37) – corpo e vontade em Schopenhauer

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Arthur herdou o brio, a sobriedade, o orgulho e a lucidez de seu pai. Sua altivez abrupta e fria arrogância também recebeu dele. A consciência de sua própria dignidade e seu amor-próprio tão fortemente desenvolvido não puderam ser abrandados pelo carinho materno, porque Johanna tinha de fazer um grande esforço para obrigar-se a sentir amor por ele. Seu filho é a encarnação de sua própria renúncia à vida. Johanna quer viver sua própria vida. Como ela mesma não consegue viver como deseja, acredita que não dispõe de sua própria vida, porque tem de cumprir seus deveres maternos, um fato que lhe é recordado diariamente. De fato, o nascimento de Arthur representou para ela uma armadilha que a abocanhava de uma vez por todas.

Quem não experimentou o sentimento primordial do amor materno, muito frequentemente sentirá que lhe falta o amor primitivo pela própria vida. Para quem falta uma resposta afirmativa fundamental perante a vida e dispõe somente de uma altivez orgulhosa, como era o caso de Arthur, o resultado será lançar um olhar de distanciamento avaliativo sobre todos os seres vivos e é dele que surge a filosofia: o senso de espanto de que a vida exista e que é projetado sobre tudo quanto a vida traz. Apenas quem [35] não conseguiu unir-se a tudo quanto vive, porque lhe faltam os laços afetivos indeléveis que lhe permitiríam desenvolver essa simpatia para com o que é vivo, é capaz de distanciar-se de tudo quanto pertence à vida: o corpo, a respiração e a vontade. Uma deficiência assim singular e estranha, que logo despertou o assombro e a admiração do jovem Arthur perante a vontade de viver, da qual não nos podemos livrar, por mais que nos atemorize, porque somos feitos inteiramente de sua matéria. Mas o assombro não precisa necessariamente estar unido ao espanto. Arthur se assombrava porque, desde o começo, sentia dentro de si uma disposição de ânimo que não lhe permitia reconhecer a calidez da vida. Ele a percebia de forma diversa: era um turbilhão gelado que o percorria e ao longo do qual ele mesmo era arrastado. O que dele estava mais próximo — a realidade pulsante de seu próprio corpo — era percebido por ele como algo que se achava distante e estranho, tão distante e tão estranho, de fato, que para ele se tornava um mistério, que o conduziu simplesmente para o mistério filosófico. Era esta realidade corporal que ele denominava de “Vontade” e que se veio a tornar o ponto central de sua filosofia. Precipitado na experiência de sua própria vitalidade, que para ele parecia estranha, isto lhe serve como apoio para mais tarde desvendar o mistério daquilo que Kant   havia empurrado para a maior distância possível: a ameaçadora “Coisa em Si” — o mundo como ele o é de fato, totalmente independente da forma como nós o concebemos e apresentamos para nós mesmos. O que Schopenhauer   buscava era transformar este ponto remoto novamente em algo bem próximo. A “Coisa em Si” — somos nos mesmos em nossa corporalidade mais íntima, vivenciada de dentro para fora. A “Coisa em Si” é a Vontade, que vive, mesmo antes de chegar a compreender a si mesma. O mundo é o universo da vontade e essa vontade, uma vez manifesta, é o coração latejante deste universo. Em última análise, nós sempre somos o mesmo que o Todo. Mas essa totalidade é selvageria, uma luta consigo mesmo, sacudida por uma perene inquietação. E acima de tudo: não faz o menor sentido, não possui o menor propósito. É isso que deseja o sentimento vital schopenhaureano.

Isto ocorreu porque o menino que não tinha sido nem um pouco “planejado” pelo menos por sua mãe, a fim de ganhar confiança em si mesmo, desde cedo aprendeu a colocar os pés firmemente em um mundo que, para ele, não possuía nenhum “propósito elevado”, que não parecia apresentar [36] em sentido algum uma “finalidade última”, mas em cujo centro existia uma estranha atividade obscura que punha tudo em movimento.

Além disso, os passeios a pé que o pequeno Arthur fazia com sua mãe através de Dantzig também lhe causaram uma impressão de outro tipo, neste caso topográfica e concreta, de como o centro vital do mundo — para uma criança pequena Dantzig parecia ser o mundo — igualmente era o coração das trevas, cheio de mistérios e igualmente perigoso.


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