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Schopenhauer (MVR2:20-22) – diálogo entre sujeito e matéria

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

O Sujeito — Eu sou, e fora de mim nada existe. Pois o mundo é minha representação.

A Matéria — Que arrogância néscia! Eu, eu sou, e fora de mim nada existe. Pois o mundo é minha forma transitória. Tu és um simples resultado de uma parte dessa forma e és totalmente contingente.

O Sujeito — Que disparate! Nem tu nem tua forma existiríam sem MIM: vós sois condicionados por mim. Quem me abstrai, e ainda assim acredita poder pensar-vos, enreda-se numa grande ilusão: pois vossa existência fora de minha representação é uma contradição flagrante, um síderoxylon, [1] vosso SER significa unicamente que sois representado por mim. Minha representação é o lugar de vossa existência: por conseguinte, eu sou a primeira condição dela.

A Matéria — Felizmente a presunção da tua assertiva logo será contradita de uma maneira real e não por meras palavras. Mais alguns instantes e... tu de fato não existirás mais, estarás naufragado no nada com todo o teu palavrório, terás, como uma sombra desaparecido e sofrido a fatalidade de cada uma de minhas formas transitórias. Eu, entretanto, permaneço, sem feridas e conservada, de milênio em milênio, pelo tempo infinito, e assisto inabalável ao jogo de mudança de minhas formas.

O Sujeito — Esse tempo infinito de que te gabas viver, existe, como o espaço infinito que tu preenches, meramente em minha representação, sim, é simples forma de minha representação, que trago pronta em mim, na qual tu te expões, forma que te acolhe e pela qual tu unicamente existes. A aniquilação, entretanto, com a qual me ameaças, não atinge a MIM; do contrário serias aniquilada COMIGO: antes, ela atinge apenas o indivíduo, que por curto espaço de tempo é meu sustentáculo e é por mim representado, como tudo o mais.

A Matéria — Mesmo que eu te conceda isso e resolva considerar a tua existência, que em realidade está ligada inseparavelmente a esses indivíduos transitórios, como algo que persiste por si mesmo, ainda assim ela permanece dependente da minha, Pois tu és sujeito só na medida em que tens um objeto: e esse objeto sou eu. Eu sou o núcleo e conteúdo desse objeto, o permanente nele, o que lhe dá unidade e coesão, sem o que ele seria tão inconsistente e desapareceria tão vaporosamente como os sonhos e as fantasias dos teus indivíduos, ainda que eles mesmos tenham haurido de mim o seu conteúdo aparente.

O Sujeito — Fazes bem em não quereres disputar sobre a minha existência, pelo fato de ela estar ligada a indivíduos: pois tão inseparavelmente quanto eu estou atado a estes, estás tu a tua irmã, a forma, e jamais terias aparecido sem ela. Tanto tu quanto eu, despojados e isolados, nunca fomos vistos por olho algum: pois nós dois não passamos de abstrações. Há no fundo UM ser que se intui a si mesmo e é por si mesmo intuído, mas cujo ser em si não consiste no intuir nem no vir-a-ser-intuído, já que isto é repartido entre nós.

Ambos — Desse modo, então, estamos inseparavelmente atados como partes necessárias de um todo, que nos abrange e que não subsiste senão por nós. Somente um mal-entendido pode nos opor como inimigos e assim induzir-nos um a combater a existência do outro, existência do outro com a qual cada um mantém a sua e a perde.

Esse todo que abrange a ambos é o mundo como representação, ou a aparência. Feita a sua exclusão permanece apenas o puramente metafísico, a coisa em si, que reconheceremos no segundo livro como a vontade.


Ver online : O mundo como vontade e como representação. Segundo Tomo.


[1“Ferro-madeira”: neologismo, a partir de duas palavras gregas, para indicar uma contradição nos termos. (N. T.)