ECCD
Eu jamais compreenderei por que se pôde chamar o corpo de ilusão — não mais do que compreenderei como se pôde conceber o espírito à parte do drama da vida, de suas contradições e de suas deficiências. Isto é, de toda evidência, não ter consciência da carne, dos nervos e de cada órgão. Incompreensível, me parece, tudo isto, ainda que eu desconfie que esta inconsciência seja uma condição essencial da felicidade. Aqueles que permanecem ligados à irracionalidade da vida, subservientes ao mesmo ritmo orgânico anterior à aparição da consciência, não percebem o estado em que a realidade corporal está ligada a esta mesma consciência. Tal ligação denota, com efeito, uma doença essencial da vida. Pois não é uma doença sentir constantemente suas pernas, seu estômago, seu coração, etc., de ter consciência da menor parte de seu corpo? A realidade do corpo é uma das mais assustadoras que existem. Eu gostaria de saber o que seria do espírito sem os tormentos da carne, ou a consciência sem uma grande sensibilidade dos nervos. Como se pode conceber a vida na ausência do corpo, como se pode imaginar uma existência autônoma e original do espírito? Pois o espírito é o fruto de uma desorganização da vida — tanto quanto o homem é um animal que traiu suas origens. A existência do espírito é uma anomalia da vida. Por que eu não renunciaria ao espírito? Esta renúncia não seria também uma doença do espírito, antes de ser uma doença da vida?