“Por os fatos de lado…”

(Borella1990)

De maneira geral, a filosofia política de Rousseau passa constantemente e indevidamente da ordem dos conceitos lógicos para a das realidades concretas. Enquanto a relação entre essas duas ordens não for estudada em Rousseau por si mesma, não será possível julgar verdadeiramente essa filosofia. Ora, os conceitos em sua obra são obtidos ao término de um processo de abstração totalmente novo. A abstração aristotélica parte das coisas tais como são dadas na experiência concreta. Ela é, portanto, sempre normatizada por esse dado concreto, e é ele que ela deve tornar inteligível — ou melhor, é sua inteligibilidade que os conceitos devem exprimir. Ao contrário, Rousseau começa “por afastar todos os fatos” (Discurso sobre a Origem da Desigualdade. Obras Completas, “Pléiade”, t. III, p. 132). A razão constrói direta e axiomaticamente os conceitos de que necessita, de tal modo que esses conceitos designam algo “que já não existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e do qual, no entanto, é necessário ter noções precisas para bem julgar o nosso estado presente” (ibidem, p. 123). Geralmente se elogia Rousseau por ter ousado esse golpe de força racionalista. Nós, porém, vemos nisso o pecado original da filosofia política. A consequência é que a “história hipotética” (p. 127) se torna a norma do real: “a antecedência lógica acarreta obrigatoriamente a antecedência histórica” (J. Starobinski, ibidem, notas, p. 1285). Isso significa que a racionalidade, embriagada de si mesma, perdeu o sentido do real (que, aliás, é tido por confuso, deformado, indiscernível) e não reconhece mais nenhum direito além do seu próprio.

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