Permanência do eu?

(Gil1998)

[…] Não cometemos uma deriva essencialista ao qualificar a subjectividade como uma forma — uma membrana porosa —, nem hipostasiamos o eu vendo nele um princípio de actividade que se sente detentor da experiência que de si tem. Seria este o assento genuíno da unidade do eu. Contudo, não é assim que o experienciamos, o que só complica a nossa interrogação: vivemo-lo antes como um pólo de referência fixo e permanente, ordenador do conjunto da experiência.

Que significa então ao certo a «permanência»? Não será um último refúgio da substância, uma hipóstase disfarçada? Tendo também a pensar que assim é — e encaminhamo-nos para a primeira pergunta deixada em aberto. Compreendemos talvez agora melhor as articulações da unidade do eu — era a segunda pergunta —; falta-nos perceber a adesão a si. Ora é fácil ver que a adesão a si não seria pensável sem o sentimento da duração; sabemo-lo por introspecção, por experiência própria, mesmo se se afigura difícil exprimi-lo conceptualmente. Se fosse um pensar, um sentir, um imaginar sem continuidade, e uma memória igualmente fragmentada, incapaz de estabelecer um nexo íntimo, uma relação interna entre o eu de ontem e o eu de hoje, se apercebesse o passado como uma sequência de acontecimentos instantâneos e não como uma linha ininterrupta de — precisamente — experiência, não saberia reconhecer-me na minha vida e através dela, como me parece reconhecer-me. A elaboração do eu não requer o reconhecimento de si, que vem depois; o reconhecimento supõe um euadquirido, é uma consciência e uma experiência em segundo grau.

E o reconhecimento é condição da adesão. Podemos aderir a nós porque julgamos reconhecer-nos na nossa experiência, é o único bem que possuímos, e reconhecemo-nos na nossa experiência porque julgamos descortinar nela uma continuidade que conservamos e nos conserva. Mas com que direito, em nome de quê? Antes de Hume crítico da identidade pessoal, Montaigne alerta-nos contra o sentimento da permanência e a ilusão da identidade: «Não pinto o ser. Pinto a passagem: não a passagem de uma idade em uma outra ou, como diz o povo, de sete anos em sete anos, mas de dia em dia, de minuto em minuto. É necessário acomodar a minha história à hora. Poderei daqui a um momento mudar, não só de fortuna mas também de intenção. É uma lista de diversos e mutáveis acidentes e de imaginações irresolutas e, quando calha, contrárias; seja que eu sou um outro eu próprio, seja que encare as coisas por outras circunstâncias e considerações» (livro III, cap. 2).