Panteísmo (Espinosa)

1) Depois de, anteriormente, ter demonstrado a existência de Deus, chegou agora o momento de mostrar o que ele é. É um ser do qual tudo, ou infinitos atributos são afirmados1, atributos cada um deles infinitamente perfeito no seu gênero.

2) Para exprimir claramente o nosso pensamento sobre esta matéria, devemos, em primeiro lugar, enunciar as quatro seguintes proposições:

1. Não existe nenhuma substância finita; pelo contrário, cada substância deve ser infinitamente perfeita no seu gênero, isto é, no infinito entendimento de Deus não pode haver substância mais perfeita do que a existente na natureza 2;

2. Não existem duas substâncias iguais;

3. Uma [substância] não pode engendrar outra;

4. No infinito entendimento de Deus não existe nenhuma substância que formalmente não exista na natureza.

3) No respeitante à primeira proposição, isto é, que não existe nenhuma substância finita, se alguém pretendesse defender o contrário, perguntar-lhe-íamos se, pois, essa substância é limitada por si própria, isto é, se assim se limitou e não quis ser mais ilimitada, ou se é assim limitada pela sua causa, que ou não pôde ou não quis dar-lhe mais [substância].

4) A primeira hipótese não é verdadeira porque não é possível que uma substância se tenha querido limitar, e em particular uma substância que existe por si mesma; afirmo, pois, que é limitada pela sua causa, que necessariamente é Deus.

5) Mas se, conforme a segunda hipótese, é limitada pela sua causa, isso deve ser ou porque essa causa não pôde dar mais, ou porque não o quis. Que Deus não tenha podido dar mais, isso repugna à sua omnipotência 3; que não tenha querido dar mais, se bem que o pudesse, isso tem um sabor a malevolência que de maneira alguma em Deus, plena bondade e plenitude, poderá existir.

6) Em relação à segunda proposição, que não existem duas substâncias iguais, dela extraímos a demonstração de que cada substância é perfeita em seu gênero; porque, se existissem duas substâncias iguais, uma deveria necessariamente limitar a outra e, por consequência, não poderia ser infinita, como anteriormente já demonstrámos.

7) No que respeita à terceira proposição, isto é, que uma [substância] não pode engendrar outra, se alguém pretendesse defender o contrário, perguntar-lhe-íamos se a causa que deveria engendrar essa substância tem ou não os mesmos atributos que a substância engendrada.

8) Como do nada não pode derivar algo, a segunda hipótese não tem viabilidade. Enfrentemos, pois, a primeira. Então perguntamos se na substância que deveria ser causa da que é engendrada há tantas, menos ou mais perfeições do que na que é engendrada. Menos não pode haver pelas razões já apontadas. Mais, também não, porque, neste caso, esta segunda substância deveria ser limitada, o que repugna ao que já demonstrámos. Haverá, pois, tantas, e assim serão iguais, o que repugna manifestamente à nossa precedente demonstração.

9) Por outro lado, o que é criado de modo algum resultou do Nada, mas deve ser necessariamente criado por um ser existente; mas que deste último algo tenha podido resultar e que também não possua este algo, depois de ele ter resultado, o nosso entendimento não o poderá conceber.

10) Enfim, se quisermos procurar a causa da substância que é o princípio das coisas resultantes do seu atributo, teremos então de procurar também a causa desta causa, depois a causa desta nova causa, e assim até ao infinito, de modo que, se tivermos necessariamente de nos deter em qualquer parte, como devemos, é necessario determo-nos nessa substância única.

11) Quanto à quarta proposição, no infinito entendimento de Deus não existe nenhuma substância que formalmente não exista na natureza, podemos demonstrá-la pelas seguintes razões:

1. Pelo infinito poder de Deus, visto que nele não há nem pode haver qualquer causa pela qual possa ser levado a criar um atributo mais cedo ou melhor do que outro;

2. Pela simplicidade da sua vontade;

3. Pela razão de que não pode deixar de fazer o que é bom;

4. Porque é impossível que o que actualmente não é possa vir a ser, visto que uma substância não pode engendrar outra.

12) De tudo isto se segue que da natureza tudo é afirmado [do ponto de vista] do todo e que assim a natureza se compõe de infinitos atributos, sendo cada um deles perfeito no seu gênero. O que inteiramente concorda com a definição que se dá de Deus. […]

17) As razões pelas quais dissemos que todos estes atributos existentes na natureza formam apenas um único ser, e não seres distintos (porque não podemos concebê-los clara e distintamente uns sem os outros), são as seguintes:

1. Anteriormente chegámos já à conclusão de que deve existir um ser infinito e perfeito pelo qual se não pode entender outra coisa senão um ser do qual tudo deve ser afirmado de maneira absoluta. Porque a um ser que possui uma determinada essência devem pertencer atributos e, quanto maior for a essência que se lhe reconheça, maior número de atributos se lhe deve atribuir; por consequência, se este ser é infinito, os atributos também devem ser infinitos, e é a isso que precisamente chamamos um ser perfeito;

2. A unidade que por toda a parte vemos na natureza; ora, se na natureza existissem seres distintos 4, seria impossível que um se unisse a outro;

3. Uma substância não pode, como já vimos, engendrar outra e é impossível a uma substância que não é começar a ser; vemos, no entanto, que nenhuma substância concebida como existindo à parte (e de que, no entanto, estejamos certos existir na natureza) existe necessariamente, visto que a sua essência particular não implica a existência 5. Daí decorre, por consequência, que a natureza, que não provém de qualquer causa e que, contudo, sabemos existir, deve necessariamente ser um ser perfeito ao qual pertence a existência.

B. Espinosa, Pequeno Tratado, trad. franc. de Appuhn, cap. 11. 1

  1. A razão disto é que, não podendo o Nada ter atributos, o Todo deve ter todos os atributos; e pela mesma razão por que o Nada não tem atributos porque nada é, o alguma coisa tem atributos porque é alguma coisa. Portanto, quanto mais uma coisa é, mais atributos deve ter; e, por consequência, sendo Deus esse algo possuidor da mais alta perfeição, a infinidade, a totalidade, também deve ter atributos perfeitos, infinitos, e a totalidade dos atributos.[]
  2. Se pudermos demonstrar que não pode haver nenhuma substância limitada, toda a substância deve então pertencer sem limitação ao ser divino. Ora provamo-lo desta maneira: ou a substância se limitou a si própria, ou foi limitada por uma outra. Não se pode ter limitado porque, sendo limitada, teria de transformar por completo a sua natureza. Também não é limitada por outra porque estoutra deveria ser limitada ou ilimitada: limitada não é, mas sim ilimitada: logo ela é Deus. Deus deveria, pois, tê-la limitado porque havia nele ou carência de potência ou carência de vontade; a primeira hipótese repugna à sua omnipotência; a segunda, à bondade; que não pode haver substância limitada segue-se claramente de que tal substância deveria ter obtido algo do Nada, o que é impossível. Com efeito, donde proviria aquilo em que difere de Deus? Não proviria de Deus porque ele nada tem de imperfeito nem de limitado, etc., e, per-tanto, donde, a não ser do Nada? Assim, só existe substância ilimitada. Donde resulta que não podem existir duas substâncias ilimitadas iguais: porque, desde que as admitamos, haverá necessariamente limitação. E, por sua vez, daí decorre que uma não pode produzir outra; assim como isto: a causa que produziria esta substância deveria ter o mesmo atributo que a substância produzida e ter também tanta perfeição, ou mais, ou menos; a primeira hipótese não pode ser, porque então haveria duas substâncias iguais; a segunda também não, porque então uma seria limitada; e ainda a terceira também não é, porque do nada nada resulta.
    Outra demonstração: se do ilimitado resulta uma coisa limitada, então o ilimitado será também limitado, etc. Portanto, uma substância não pode engendrar outra. E daí se conclui que toda a substância deve existir formalmente, porque se ela não é, não há nenhuma possibilidade de que possa comecar a ser.[]
  3. Dizer a respeito desta matéria que a natureza da coisa exigia, isso (a limitação) e, por consequência, não podia ser de outra forma, não significa coisa nenhuma; porque a natureza duma coisa nada pode exigir enquanto ela não é. Dizeis que, no entanto, se pode ver o que pertence à natureza duma coisa que não é? Quanto à existência, isso é verdade, mas de maneira alguma quanto à essência. E nisso consiste a diferença entre criar e engendrar; criar é admitir uma coisa quanto à essência e à existência simultaneamente, ao passo que engendrar se diz quando uma coisa começa a ser, apenas quanto à existência, e eis porque agora não há criação na natureza, mas apenas geração. Portanto, se Deus cria, cria a natureza da coisa ao mesmo tempo que a própria coisa; seria assim mau se, podendo, mas não o querendo, tivesse criado a coisa de tal modo que ela não estivesse de acordo com a sua causa em essência e em existência. Contudo, não se pode dizer que aquilo a que chamamos criar, falando com propriedade, jamais tenha existido, e quisemos antes mostrar o que se pode dizer a tal respeito estabelecendo a diferença entre criar e engendrar.[]
  4. Queremos dizer que, se existissem substancias distintas sem relação com um mesmo ser, a sua união seria impossível, pontue vemos claramente que não têm nada de comum entre si; assim, o pensamento « a extensão de que. no entanto, somos formados.[]
  5. Isto é: se nenhuma substância pode ser a não ser existindo e, no entanto, em nenhuma substância a existência decorre da essência, enquanto ela for concebida à parte, segue-se que ela não pode ser uma coisa existente à parte, mas deve ser um atributo de uma outra que é o ser único, a saber: total. Ou, por outras palavras: toda substância é existente e, se não pode conceber-se a essência de uma substância em si mesma, nenhuma existência dai decorre: por consequência, nenhuma substância existente pode ser concebida como existente em si mesma, mas deve pertencer a alguma outra coisa. Ou, por outra forma dito: quando formamos no nosso entendimento as ideias do pensamento e da extensão substanciais, concebemo-las apenas na sua essência, não na sua existência; não as concebemos de tal maneira que a sua existência decorra da sua essência. Contudo, demonstrando que elas são atributos de Deus, demonstramos a priori que existem, e a posteriori (apenas em relação & extensão) esta existência deduz-se dos modos que necessariamente devem tê-lo por sujeito.[]