Paulo César de Souza
Na medida em que sempre, desde que existem homens, houve também rebanhos de homens (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas), e sempre muitos que obedeceram, em relação ao pequeno número dos que mandaram — considerando, portanto, que a obediência foi até agora a coisa mais longamente exercitada e cultivada entre os homens, é justo supor que via de regra é agora inata em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de consciência formal que diz·, “você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente se abster daquilo”, em suma, “você deve”. Esta necessidade procura saciar-se e dar um conteúdo à sua forma; nisso ela agarra em torno, conforme sua força, impaciência e tensão, de modo pouco seletivo, como um apetite cru, e aceita o que qualquer mandante — pais, mestres, leis, preconceitos de classe, opiniões públicas — lhe grita no ouvido. A singular estreiteza da evolução humana, seu caráter hesitante, lento, com frequência regressivo e tortuoso, deve-se a que o instinto gregário da obediência é transmitido mais facilmente como herança, em detrimento da arte de mandar. Se imaginarmos esse instinto levado à aberração, acabarão por faltar os que mandam e são independentes; ou sofrerão intimamente de má consciência e precisarão antes de tudo se iludir, para poder mandar: isto é, acreditar que também eles apenas obedecem. Essa situação existe realmente na Europa de hoje: eu a denomino a hipocrisia moral dos que mandam. Não sabem se defender de sua má consciência, a não ser posando de executores de ordens mais antigas ou mais elevadas (dos ancestrais, da Constituição, do direito, das leis ou inclusive de Deus), ou tomando emprestadas máximas-de-rebanho ao modo de pensar do rebanho, aparecendo como “primeiros servidores de seu povo” ou “instrumentos do bem comum”. Por outro lado, na Europa de hoje o (97) homem de rebanho se apresenta como a única espécie de homem permitida, e glorifica os seus atributos, que o tornaram manso, tratável e útil ao rebanho, como sendo as virtudes propriamente humanas: a saber, espírito comunitário, benevolência, diligência, moderação, modéstia, indulgência, compaixão. Mas, nos casos em que se acredita não poder dispensar o chefe e carneiro-guia, fazem-se hoje muitas tentativas de substituir os comandantes pela soma acumulada de homens de rebanho sagazes: eis a origem de todas as Constituições representativas, por exemplo. Apesar de tudo, que benefício, que alívio de uma pressão já intolerável representa, para esses europeus bichos-de-rebanho, a aparição de alguém que manda incondicionalmente; disso o maior testemunho recente é o efeito produzido pelo surgimento de Napoleão — a história do surgimento de Napoleão é quase que a história da superior felicidade que este século alcançou em seus homens e momentos mais preciosos.
Mario Ferreira dos Santos
A existência de rebanhos humanos é imoral (confrarias sexuais, comunidades, tribos, nações igrejas, e estados) e sempre houve um grande número de homens que obedecem a um pequeno número de chefes. A obediência foi o que mais se exercitou e cultivou entre os homens. Poder-se-ia deduzir que cada um de nós possui a necessidade inata de obedecer, uma espécie de consciência formal que ordena: “farás isto ou aquilo, sem discutir”, te absterás disto ou daquilo sem objetar, numa palavra, é um “tu farás”.
Necessidade que procura saciar-se e proporcionar conteúdo à sua forma, e então, segundo sua intensidade, impaciência e tensão, como apetite grosseiro sem padrão de escolha, aceitará tudo que lhe gritam aos ouvidos, quaisquer pessoas que o comandem, sejam pais. professores, lei, preconceitos, opiniões públicas, etc. A evolução marcha, portanto, de modo tão limitado como titubeante, lenta e frequentemente regressiva, já que o instinto gregário da obediência é o que se herda mais facilmente e o que prospera à custa da arte de mandar.
Supondo-se que este instinto chegue aos últimos excessos, chega-se à inexistência dos comandos — são independentes ou sofrem profundamente de má consciência, precisam inicialmente se iludir, a fim de poderem comandar: fingem também obedecer. Este é o estado da Europa moderna. E se a este instinto se permitisse alcançar o grau máximo, não existiria mais ninguém para mandar e viver independentemente. e eu o chamo “a hipocrisia moral dos dominadores”. Para calar sua consciência fazem-se passar pelos executores de mandatos antigos e supremos (os dos antepassados, os da Constituição, os de direito, os das leis e inclusive os de Deus), ou recolhem fórmulas gregárias da mentalidade do rebanho e se oferecem seja como “o primeiro servidor do Estado” ou como o “instrumento” do bem público.
Hoje por outro lado, o homem de rebanho, na Europa, mostra-se como única espécie autorizada, glorificando suas qualidades, graças às quais é domesticado, tratável e útil ao rebanho, e tendo estas como as únicas virtudes humanas, virtudes como a sociabilidade, benevolência, alteridade, aplicação, moderação, modéstia, indulgência, piedade. Em todos os casos em que seja impossível passar sem chefes e sem carneiros condutores procura-se em nossos dias, por todos os meios, substituir os dirigentes por um pequena grupo de homens inteligentes de tipo gregário. Esta entre outras a origem das constituições representativas. Que bem-estar sentem. apesar de tudo, estes europeus gregários; alivio de um jugo que se faz insuportável, como a aparição de um senhor absoluto! O efeito produzido pelo advento de Napoleão foi o último grande exemplo europeu. A história da influência de Napoleão é, poder-se-ia dizer, a história da maior sorte que atingiu nosso século nos seus homens e nos momentos ais preciosos.
Original
Insofern es zu allen Zeiten, solange es Menschen gibt, auch Menschenherden gegeben hat (Geschlechts-Verbände, Gemeinden, Stämme, Völker, Staaten, Kirchen) und immer sehr viel Gehorchende im Verhältnis zu der kleinen Zahl Befehlender – in Anbetracht also, daß Gehorsam bisher am besten und längsten unter Menschen geübt und gezüchtet worden ist, darf man billig voraussetzen, daß durchschnittlich jetzt einem jeden das Bedürfnis darnach angeboren ist, als eine Art formalen Gewissens, welches gebietet: »du sollst irgend etwas unbedingt tun, irgend etwas unbedingt lassen«, kurz »du sollst«. Dies Bedürfnis sucht sich zu sättigen und seine Form mit einem Inhalte zu füllen; es greift dabei, gemäß seiner Stärke, Ungeduld und Spannung, wenig wählerisch, als ein grober Appetit, zu und nimmt an, was ihm nur von irgendwelchen Befehlenden – Eltern, Lehrern, Gesetzen, Standesvorurteilen, öffentlichen Meinungen – ins Ohr gerufen wird. Die seltsame Beschränkt-heit der menschlichen Entwicklung, das Zögernde, Langwierige, oft Zurücklaufende und Sich-Drehende derselben beruht darauf, daß der Herden-Instinkt des Gehorsams am besten und auf Kosten der Kunst des Befehlens vererbt wird. Denkt man sich diesen Instinkt einmal bis zu seinen letzten Ausschweifungen schreitend, so fehlen endlich geradezu die Befehlshaber und Unabhängigen; oder sie leiden innerlich am schlechten Gewissen und haben nötig, sich selbst erst eine Täuschung vorzumachen, um befehlen zu können: nämlich als ob auch sie nur gehorchten. Dieser Zustand besteht heute tatsächlich in Europa: ich nenne ihn die moralische Heuchelei der Befehlenden. Sie wissen sich nicht anders vor ihrem schlechten Gewissen zu schützen als dadurch, daß sie sich als Ausführer älterer oder höherer Befehle gebärden (der Vorfahren, der Verfassung, des Rechts, der Gesetze oder gar Gottes) oder selbst von der Herden-Denkweise her sich Herden-Maximen borgen, zum Beispiel als »erste Diener ihres Volks« oder als »Werkzeuge des gemeinen Wohls«. Auf der andern Seite gibt sich heute der Herdenmensch in Europa das Ansehn, als sei er die einzig erlaubte Art Mensch, und verherrlicht seine Eigenschaften, vermöge deren er zahm, verträglich und der Herde nützlich ist, als die eigentlich menschlichen Tugenden: also Gemeinsinn, Wohlwollen, Rücksicht, Fleiß, Mäßigkeit, Bescheidenheit, Nachsicht, Mitleiden. Für die Fälle aber, wo man der Führer und Leithammel nicht entraten zu können glaubt, macht man heute Versuche über Versuche, durch Zusammen-Addieren kluger Herdenmenschen die Befehlshaber zu ersetzen: dieses Ursprungs sind zum Beispiel alle repräsentativen Verfassungen. Welche Wohltat, welche Erlösung von einem unerträglich werdenden Druck trotz alledem das Erscheinen eines unbedingt Befehlenden für diese Herdentier-Europäer ist, dafür gab die Wirkung, welche das Erscheinen Napoleons machte, das letzte große Zeugnis -die Geschichte der Wirkung Napoleons ist beinahe die Geschichte des höheren Glücks, zu dem es dieses ganze Jahrhundert in seinen wertvollsten Menschen und Augenblicken gebracht hat.