Marques Cabral (N) – Ressentimento em Nietzsche

AMCNH1

Do modo de valoração judaica surge um tipo de décadence não ingênua. Esse novo tipo de décadence identifica-se com um modo de “inversão de valores, graças ao qual a vida na Terra adquiriu um novo e perigoso atrativo por alguns milênios”.1 Essa periculosidade está ligada ao modo de conservação do tipo sacerdotal de valoração. Este legitima-se a partir da anulação de um modo de produção natural ou afirmativo. Como essa legitimidade acontece através da perversão e inversão de um tipo de vontade de poder ascendente, Nietzsche pôde dizer que o modo de valoração sacerdotal judaico promoveu a “rebelião escrava na moral”.2 Essa expressão mostra que o tipo sacerdotal judaico dissemina o tipo de moralidade escrava ou vil. Ora, esse tipo de moral determina-se a partir da experiência psicofisiológica do ressentimento. Como a décadence inerente ao modo de relação do sacerdote judaico determina-se pelo ressentimento, deve-se questionar a relação essencial entre moral dos escravos e ressentimento. Com a explicitação dessa questão, que será realizada aqui de modo sintético, ficará claro o solo do qual emerge o cristianismo e por que este se diferencia da décadence ingênua de Jesus e do budismo. Cabe, primeiramente, perguntar: o que Nietzsche entende por moral dos escravos? Quais são as suas características? Uma passagem de Para a genealogia da moral abre as portas para a compreensão dessa questão:

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz não a um “fora”, um “outro”, “não-eu” — e este Não é o seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores — este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si — é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto — sua ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão — seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão. “Nós os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes!”. (GM/GM, I, §10.)

O texto acima apresenta, em linhas gerais, as principais diferenças entre dois modos de valoração, a saber, o proveniente da moral nobre (ou moral dos senhores) e aquele que nasce da moral dos escravos. Poder-se-ia supor, em um primeiro momento, que Nietzsche estaria inscrevendo as valorações morais em distintas classes sociais. Como tornou-se comum após, sobretudo, o pensamento marxista, os valores morais parecem ser sempre relativos às classes sociais em que se manifestam. Como vozes da consciência social pertencente à superestrutura, os valores morais produzidos por cada classe social tendem a determinar-se ideologicamente, segundo os interesses sobretudo econômicos da classe dominante. Se toda sociedade formada por dicotomias de classes tende a reproduzir o esquema ideológico da classe dominante, todos os “dominados”, quando não aceitam passivamente esses valores, como no caso da conscientização, passam a agir em reação aos valores ideológicos preponderantes. Nas sociedades escravagistas, isso ocorreu diversas vezes. A conscientização dos escravos fê-los reagir aos nobres que os escravizavam. Esse esquema interpretativo não se coaduna com o pensamento de Nietzsche. Já no aforismo 260 de Para além de bem e mal, Nietzsche afirma que as tipologias moral dos senhores/moral dos escravos foi cunhada por ele a partir de uma “perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora dominaram e continuam dominando na Terra”. Dessa incursão pelas morais “se revelaram dois tipos básicos, e uma diferença fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral dos escravos”. Esses tipos morais aparecem “em todas as culturas superiores e mais misturadas”. Ao mesmo tempo, essas culturas ensaiam frequentemente mesclas entre essas morais e, por vezes, elas se conjugam “no interior de uma só alma”.3 Essas observações destroem automaticamente a pretensão de interpretar as tipologias morais nobre/escravo por meio da ideia sociológica de classe social. Antes, nobre e escravo indicam modos de valoração diversos, nascidos de vontades de poder diferenciadas. Por isso, até mesmo em um singular pode haver a conjugação dessas duas morais. Consequentemente, a descrição acima presente em Para a genealogia da moral refere-se aos modos como a vontade de poder se articula, para que produza condições vitais (valores) distintas.

Como visto, em sentido originário, a moral é “a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’”.4 A moral produz “vida” enquanto esta depende de uma hierarquia das forças, para engendrar o singular. Nesse sentido, toda moral relaciona-se com a produção de uma relação de subordinação das forças, na qual o singular aparece e a vida é viabilizada. Por isso, moral dos senhores (nobres) e moral dos escravos dizem respeito a modos distintos de hierarquização das forças e de determinação dos singulares correlatos a essas hierarquizações. No que concerne à moral dos senhores, Nietzsche afirma que ela “nasce de um triunfante Sim a si mesma”. Essa autoafirmação é melhor compreendida quando Nietzsche afirma que o modo de valoração nobre “age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo ainda com maior júbilo e gratidão”. O caráter auto-afirmativo da moral nobre diz respeito ao fato de ela nascer de um sim a si que encontra sua medida nela mesma. Vale a pena mencionar que os nobres são “homens plenos, repletos de força e portanto necessariamente ativos”.5 Força, plenitude e atividade se conjugam no nobre. Essas características não podem ser entendidas a partir de critérios extrínsecos à vontade de poder. Antes disso, é o conceito de vontade de poder que fornece os elementos necessários para compreender as noções de homens plenos, fortes e ativos. Por esse motivo, Nietzsche, no epílogo a O caso Wagner, afirmou: “a moral dos senhores (‘romana’, ‘pagã’, ‘clássica’, ‘Renascença’), ao contrário, sendo a linguagem simbólica da vida que vingou, que ascende, da vontade de poder como princípio da vida”, opõe-se radicalmente à moral dos escravos.6 Como linguagem da vontade de poder ascendente, a moral dos senhores engendra “homens plenos, repletos de forças e portanto necessariamente ativos”, que possuem em si a medida de sua existência. De acordo com a dinâmica da vontade de poder anteriormente explicitada, todo singular é produzido pela relação agonística entre forças diversas. Dessa relação, uma força desponta como hegemônica, por conseguir comandar o destino das demais, hierarquizando-as. Esta torna-se o afeto do comando e o valor determinante do singular. Para que ela perpetue o modo de ser do singular que ela mesma determinou, faz-se mister que ela consiga abrir-se à entrada de novas forças, cooptando-as para obedecerem ao seu comando. Essa cooptação gera autossuperação do singular. Nesse caso, o singular é forte, pois é capaz de sintetizar novas forças sob o comando do seu afeto do comando. Justamente o desdobramento da autossuperação da vontade de poder gera uma plenitude correspondente à expansão da malha vital do singular e ao aumento do poder de comando da força preponderante. Tal modo de realização da vontade de poder encontra-se em sua própria dinâmica o princípio de determinação do singular. Ele é autoafirmativo porque encontra em si mesmo a medida de articulação de sua malha vital, não precisando lançar mão de nenhum princípio extrínseco para se conservar. Antes, sua conservação nasce da e na elevação. Por isso, ele é um tipo vital ativo. Sua conservação se dá em meio à atividade de síntese ou apropriação promovida pelo afeto do comando em relação a diversas novas forças que irrompem em seu caminho existencial. E por causa desse modo de determinação vital que Nietzsche pôde dizer que a moral dos senhores nasce de uma triunfante autoafirmação. Seu “Sim” é o consentimento pleno ao modo ascendente de realização da vontade de poder. Autoafirmar-se é, portanto, afirmar seu si mesmo (seu afeto do comando ou seu valor), a partir do consentimento prévio à dinâmica ascendente da vontade de poder. É isso que caracteriza a moral dos senhores.

Por outro lado, a moral dos escravos nasce de um embotamento vital radical. A vontade de poder da qual provêm os escravos não se realiza em sentido ascendente, o que equivale a dizer que a manutenção do singular não se perfaz na sua autossuperação. Antes, é justamente a incapacidade de apropriar-se de novas forças para elevar seu afeto do comando que caracteriza o tipo escravo. Consequentemente, ele não pode “dizer Sim” a si mesmo, pois seu si mesmo não nasce de um consentimento prévio ao caráter ascendente da vontade de poder. Entretanto, o escravo é um tipo vital singularizado, o que significa que ele tem que conservar-se de algum modo. Essa conservação não se identifica com a de Jesus e a do budismo, que evitam o jogo agonístico das forças, buscando amar irrestritamente a totalidade do real. No caso do modo de valoração escravo, este nasce de um não específico: “não a um ‘fora’, um ‘não-eu’, — e este Não é seu ato criador”. O escravo não encontra em si o princípio de determinação de sua existência. Ao mesmo tempo, ele não “imita” mecanicamente nenhum singular nobre. Antes, é justamente a incapacidade de ser nobre ou almejar ser nobre que determina seu caminho existencial. Essa incapacidade nasce do fato de os escravos serem “os mais impotentes”.7 Impotentes, os escravos são vitalmente fracos, pois não suportam a agonística da existência e a tarefa de cunhar um si mesmo em que se preserve o caminho do singular a partir do movimento autossuperador inerente à vontade de poder. Para não sucumbir, o escravo volta-se contra o tipo nobre, negando sua dinâmica e transformando essa negação em princípio de conservação de si mesmo. O escravo, portanto, está condicionado à alteridade do tipo senhorial. Para que o escravo se determine, ele necessita inverter o modo de valoração do senhor. E nesse sentido que o escravo necessita de um “não-eu”, um “outro”, um “fora”. Essa exterioridade indica que o escravo não encontra em si a medida de seu existir, mas necessita da alteridade do senhor para, a partir de sua impotência, criar um tipo de valor alienado do modo ascendente de determinação da vontade de poder. Ao dizer “Não” ao senhor, o escravo diz “Sim” a um outro modo de ser que o do ascendente. Por isso, Nietzsche assinala o caráter reativo do escravo. Por ser impotente, o escravo não se determina segundo a atividade inerente à vontade de poder. Todo caráter expansivo da autossuperação não é por ela suportado. Ao negar esse modo de ser, o escravo age contra o modo próprio de ser da existência e encontra a cada vez nessa negação a medida de seu existir. Contra a atividade própria da vontade de poder, o escravo age em reação à vida. Esse agir contra a atividade autossuperadora da vontade de poder é a reatividade do escravo. Assim, o escravo posiciona o nobre como a alteridade da qual ele mesmo depende para conquistar e conservar um si mesmo que negue peremptoriamente o caráter ascendente da vontade de poder.

A impotência do escravo não o leva somente a usar o nobre como a alteridade que ele deve rejeitar para produzir seu si mesmo. Como afirmou Bruscotti: “a vontade de poder impotente, inibida, torna-se uma contravontade”.8 Isso se refere ao tipo escravo. Sua impotência não gera o pacifismo de Jesus e do budismo, mas um tipo de práxis agonística peculiar. No escravo, reina o ódio; e esse ódio engendra valores.9 Entretanto, por ser um ódio de um tipo impotente, ele não pode exteriorizar-se segundo a “naturalidade” do jogo agonístico das forças. Antes, esse ódio transforma-se em uma “vingança imaginária”.10 O caráter imaginário da vingança assinala que a vontade de poder do escravo volta-se contra a vontade de poder do senhor, porém, não produz um conflito transparente com esta, em que o conflito das forças mostraria qual vontade de poder pode tornar-se hegemônica e qual deve obedecer. Isso geraria, certamente, uma “vitória” do nobre. Ora, é justamente esse tipo de embate que é insuportável para o escravo. Então, como o seu ódio transforma sua vontade de poder em uma contravontade, para que ele “peleje”, ele acaba lançando mão de um outro artifício: a vingança imaginária. Esta produz a estratégia de perversão do sentido afirmativo do senhor, transformando este, por fim, em escravo. O escravo não vence o senhor através de um “conflito de interpretações”, o que seria um meio efetivo de confronto entre os dois. Ele vence transformando o senhor em escravo e tornando seu modo de valoração hegemônico. E esse narcisismo existencial que caracteriza seu ódio e sua vingança.11 Diversos são os “venenos imaginários” produzidos pelos escravos. Eles se manifestam na metafísica, na moral, na ciência, na religião, na arte, na política, enfim, em todas as manifestações culturais. Seu sentido é cercear o espaço de produção dos valores nobres. Mas, qual a necessidade de o escravo voltar-se contra o senhor? Por que ele não adota uma prática semelhante à de Jesus e do budismo, que não transforma suas impotências em contravontades? Uma das possibilidades de compreensão dessa questão encontra-se na articulação entre ressentimento e sofrimento.

A impotência do escravo o dilacera, pois ela gera dor. Como vimos anteriormente, dor e prazer são signos de uma vontade de poder que não conseguiu apropriar-se de novas forças ou que conseguiu absorvê-las e, assim, elevou-se. O sofrimento aparece sobretudo quando o singular não suporta a entrada de novos elementos em sua malha vital e, consequentemente, sua coesão desagrega quando esses elementos irrompem em sua existência. Justamente isso caracteriza o impotente. Sua impotência advém da incapacidade de suportar a agonística das forças e de fazer desta um caminho de potencialização de seu afeto do comando. O problema é que sempre novas forças surgem e a agonística não é suprimida por causa do sofrimento do impotente. Nesse sentido, um dos modos de ele conservar o seu tipo vital é, de algum modo, obstaculizar o próprio jogo agonístico das forças. Como este lhe é incomodo, para proteger-se, o impotente deve de algum modo afastar de si a ameaça conflituosa do mundo. Esta aparece, sobretudo, nas relações que os tipos nobres instauram com os impotentes. Por isso, estes devem ser de algum modo combatidos. Eles geram mais dor aos impotentes, que, para se conservarem, lançam mão de uma vingança imaginária.12 Como sua dor deve ter algum sentido, este é encontrado justamente nos nobres. Em outras palavras, grande parte das vezes, os impotentes (doentes) concebem os nobres como causa de sua dor. Consequentemente, a anulação dos nobres passa a ser o preço a ser pago para a conquista de “paz” por parte dos impotentes. Como afirmou Nietzsche: “os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em matéria de pretextos para seus afetos dolorosos; deles fluem a própria desconfiança, a cisma com baixezas e aparentes prejuízos”. Por causa dessas características, “eles rasgam as mais antigas feridas, eles sangram de cicatrizes há muito curadas, eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho (…). ‘Eu sofro: disso alguém deve ser culpado’”.13 Se esta é a “lógica” do tipo impotente, é a partir dela que os nobres aparecerão como culpados.

Se “a vingança imaginária mantém aceso o desejo incessante de encontrar culpados e puni-los”;14 se um desses culpados é o tipo nobre e se a sua punição é justamente perverter o seu modo de valoração, então, o móvel dessa práxis não é outro senão o ressentimento. Como Nietzsche afirmou em texto anteriormente reproduzido, no ressentimento, a moral escrava sempre requer, para nascer, “um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto”.15 O ressentimento relaciona-se, então, intimamente com a reatividade da ação do escravo. Essa reatividade é a contravontade mencionada, que imaginariamente vinga-se do senhor. Re-sentir não é, nesse caso, somente sentir novamente, mas sentir-se machucado por causa da alteridade que o nobre é e buscar negar sua atividade através de uma vingança (contravontade) imaginária. Como afirmou Bruscotti: “O ressentimento precisa de um objeto sensível à dor, no qual ele possa se descarregar, pelo menos in efigie”.16 A descarga da dor não é feita por excesso de vitalidade, não é, portanto, signo da agressividade inerente à vontade de poder; a descarga do ressentimento é sinal de fraqueza e escassez vital. O ressentido sente-se aliviado quando ele perverte o sentido ascendente da vontade de poder do nobre. Esse alívio é sinal de que o próprio ressentido conservou seu tipo de vital através de sua vingança imaginária, não transfigurando seu sofrimento, mas sedando-se. Essa estratégia vital do tipo escravo não possibilita que sua décadence sucumba, abrindo espaço para uma real renovação. O ressentimento conserva um tipo que deveria sucumbir. Como sua manutenção é realizada por meio de um mecanismo de disseminação de seu tipo, tornando-o normativo, sua décadence não pode ser confundida com a décadence ingênua. O tipo escravo, então, através do ressentimento, inverte o tipo de valoração nobre e assegura o campo de manutenção de si mesmo. À medida que essa manutenção depende da inversão do nobre, a décadence que determina o escravo não pode ser igual à de Jesus, pois esta não se perfaz à luz de qualquer contravontade. Se a ascensão do sacerdote judaico identifica-se com a rebelião escrava na moral, é porque esse tipo vital eleva o ressentimento a princípio de determinação do judaísmo, pervertendo o sentido ascendente da vontade de poder da época dos reis, que se identifica com o modo nobre de valoração. E por isso que o judaísmo dos sacerdotes perverte não somente o modo de valoração dos reis de Israel, como também o sentido da décadence de Jesus. Foi nesse sentido que Nietzsche afirmou em Para a genealogia da moral:

Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos — por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito — comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante empalidece. A história humana seria uma tolice sem o espírito que os impotentes lhes trouxeram — tomemos logo o exemplo maior. Nada do que na terra se fez contra “os nobres”, “os poderosos”, “os senhores”, “os donos do poder”, é remotamente comparável ao que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de radical transvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança. Assim caminha um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança sacerdotal. Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocráticos (bom=nobre=poderoso=belo=feliz=caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, “os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança — mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!…”.17

Importa nesse texto destacar o fato de que a tipologia da moral dos escravos, por um lado, identifica-se com o tipo sacerdotal judaico. Por outro lado, esse tipo aparece como aquele que promove uma radical inversão no modo nobre de valoração. A consequência imediata dessa inversão é a elevação do estado psicofisiológico adoecido e sofredor a paradigma normatizador dos comportamentos humanos em geral. Disso decorre a difamação e o rebaixamento do modo nobre de valoração. Se todo esse desdobramento deriva-se do tipo sacerdotal judaico, então, Nietzsche o pensa como voz de um tipo peculiar de ressentimento, qual seja, aquele que determinou radicalmente o destino histórico do Ocidente, elevando a fraqueza e impotência da vontade de poder a princípios de determinação dos múltiplos matizes da cultura. Nesse sentido, o sacerdócio judaico dissemina e hegemoniza a décadence não ingênua, porquanto fez com que a anarquia das pulsões produzisse valores de autoconservação que se estabelecem à medida que pervertem o sentido ascendente da vontade de poder. Por esse motivo, Nietzsche não entende que o sacerdócio judaico tenha pervertido somente o tipo de valoração própria da época dos reis, restringindo-se somente ao âmbito religioso judaico. Antes disso, importa a Nietzsche mostrar que o judaísmo sacerdotal tornou-se o princípio de determinação do eixo axiológico em torno do qual gira a história ocidental. Com ele, a décadence tornou-se combativa e produtiva, pois passou a engendrar valores niilistas e a destruir as múltiplas possibilidades de oposição da nobreza. Ora, isso não se deu através da conversão das culturas à religião judaica. O que aconteceu foi diferente. O cristianismo surgiu como lugar de disseminação do esteio axiológico e psicofisiológico judaico, mesmo que por vezes o Ocidente tenha distinguido e às vezes contraposto judaísmo e cristianismo. Consequentemente, Nietzsche pensa o cristianismo como principal dispositivo de disseminação da décadence ressentida. Como isso aconteceu, deve ser explicado no próximo tópico.

  1. JGB/BM, §135 (trad. PCS).[]
  2. Ibidem. Cf também GM/GM, I, 7, onde esta expressão é relacionada explicitamente com tipo sacerdotal judaico.[]
  3. JGB/BM, §260 (trad.PCS).[]
  4. JGB/BM, §19 (trad.PCS).[]
  5. GM/GM.1,10.[]
  6. WA/CW, Epílogo (trad.PCS).[]
  7. GM/GM.I, §7.[]
  8. BRUSCOTTI, 2007, p. 276. Mantivemos a expressão vontade de poder e não vontade de potência como presente na tradução.[]
  9. Cf.GM/GM, 1,10.[]
  10. Ibidem.[]
  11. Cf. AZEREDO, 2003, p. 87.[]
  12. Cf. GM/GM, 111,15, em que Nietzsche mostra o sofrimento dos impotentes, relacionando-os aos ideais ascéticos dos sacerdotes ascetas.[]
  13. Idem (trad. PCS).[]
  14. GIACOIA JÚNIOR, 2005, p. 121.[]
  15. GM/GM, I, §10 (trad. PCS).[]
  16. BRUSCOTTI, 2007, p. 288.[]
  17. GM/GM.I.7 (trad. PCS modificada).[]