Wunenburger2016
Essas transformações da imagem para inseri-la na arte e na estética, que abrangem tanto as artes plásticas quanto as artes da linguagem, não nos incitam a buscar um paradigma mais radical, que permitiria evidenciar uma metanoia, uma revolução espiritual na atividade de produção e contemplação estéticas? A maioria das tradições de interpretação da experiência de imagens verdadeiramente marcantes e consistentes em seu rastro emocional e simbólico pressupõe uma espécie de sobrepotência e sobreexistência da imagem que não se reduz à sua representação. Tanto do lado da produção quanto da recepção, pode-se associar a imagem a experiências de iniciação, devoção ou êxtase do sublime. Quanto ao modo de existência, pode-se ligar a imagem a uma categoria ontológica que não seja nem o ser nem o nada, o real ou o irreal, mas uma existência de terceiro tipo, encontrada no “imaginal” das tradições visionárias e místicas ou no “corpo de ressurreição” da teologia monoteísta.
Formulamos, de fato, a hipótese de que a criação artística de imagens, plásticas e poéticas, poderia ser iluminada, em sua expressão mais elevada e intensa, por um paradigma teológico cristão: o da Páscoa estética. Pois na tradição cristã, o Filho de Deus, como imagem viva do Deus invisível, após se encarnar, aceitou morrer para si mesmo, sair do visível – mas para reaparecer, após sua morte, transfigurado. Esta epifania, posterior à encarnação, num visível desmaterializado, não seria também a ideia oculta, reguladora, do verdadeiro trabalho do artista que, através da criação, quer deslocar o olhar do visível imanente para um novo super-visível, aquele que aparece após uma transfiguração? A essência da arte das imagens não se deixaria pensar melhor à luz desse modelo teológico que implica não uma imitação do modelo, nem sua desconstrução, mas sua transfiguração num novo estado ontológico cujo paradigma mais revelador seria a ressurreição e manifestação em glória? O mythos cristão do corpo de ressurreição assim se encontraria com a tradição do mundo imaginal caro ao neoplatonismo ocidental ou oriental, ou mesmo com aquela das tradições visionárias próprias às culturas tradicionais.
Esta hipótese, que arranca a morte do Deus e sua ressurreição do plano do sagrado e religioso para torná-los fonte hermenêutica e simbólica de uma obra de arte, é objeto de várias abordagens testadas na segunda parte deste volume. Para tornar crível este modelo, convém especialmente questionar a assimilação convencional da imagem artística a uma simples re-presentação. A imagem não se mede apenas por sua capacidade de assegurar uma boa ou má reprodução. Pois em toda imagem, visual ou verbal, permanece também um modo de presença, uma vida imanente, difíceis de subsumir sob as categorias clássicas da ontologia. Uma imagem artística não tem a realidade do percebido sem ser redutível à irrealidade do fictício. Toda imagem oscila paradoxalmente entre presença e ausência, entre ser e nada. Esta fenomenologia livre da imagem vê seus pressupostos reforçados com o surgimento da arte não figurativa, que permite melhor apreender, na ausência de um mundo reconhecível, a natureza da consistência da imagem. Seja no sentido da fabricação ou da recepção, verifica-se então a força hermenêutica do paradigma da transfiguração, que retorna recorrentemente para dar sentido a este jogo sutil entre desaparecimento do mundo e revelação de outro, visível de outro modo. De forma que, em última análise, a imagem artística assim dialetizada nos conduziria não a produções imaginárias, mas a um novo tipo de entidades, que podemos nomear “imaginal”. O imaginal, como o corpo de ressurreição, serviriam assim para nos aproximarmos deste “modo de ser”, tão sutil e desconcertante, das obras de arte que escapam às categorias binárias da ontologia clássica e que daria conta da densidade e singularidade da experiência estética.