Hadot (PHCI) – Três regras de vida

PHCI

A conduta prática, como vimos, obedece a três regras de vida que determinam a relação do indivíduo com o curso necessário da Natureza, com os outros homens e com seu próprio pensamento. Assim como a exposição dos dogmas, a exposição das regras de vida é fortemente estruturada em Marco Aurélio. As três regras de vida, as três disciplinas, correspondem, como teremos que repetir, às três atividades da alma: o julgamento, o desejo, o impulso, e aos três domínios da realidade: a faculdade individual de julgar, a Natureza universal, a natureza humana, como mostra o esquema seguinte:

atividade domínio da realidade atitude interior
julgamento faculdade de julgar objetividade
desejo Natureza universal consentimento ao Destino
impulso à ação Natureza humana justiça e altruísmo

Encontra-se, portanto, muito frequentemente esse modelo ternário nas Meditações. Citemos alguns textos importantes:

“Em toda parte e constantemente, depende de ti

– comprazer-te piedosamente na presente conjunção dos eventos,

– conduzir-te com justiça para com os homens presentes,

– aplicar à representação presente as regras de discernimento, para que nada se infiltre que não seja objetivo (VII,54).

“Basta-te

– o presente julgamento de valor, desde que seja objetivo,

– a presente ação, desde que seja realizada a serviço da comunidade humana,

– a presente disposição interior, desde que encontre sua alegria em toda conjunção de eventos produzida pela causa exterior” (IX,6).

“A natureza razoável segue bem o caminho que lhe é próprio

– se, no que diz respeito às representações, ela não dá seu assentimento nem ao que é falso, nem ao que é obscuro,

– se ela dirige seus impulsos apenas para as ações que servem a comunidade humana,

– se ela só tem desejo e aversão pelo que depende de nós, enquanto acolhe com alegria tudo o que lhe é dado em partilha pela Natureza universal” (VIII,7).

Ou ainda:

“Apagar a representação (phantasia)

Parar o impulso à ação (horme)

Extinguir o desejo (orexis)

Ter em seu poder o princípio diretor (hegemonikon)” (IX,7).

“A que, então, é preciso exercitar-se?

A uma única coisa:

– um pensamento dedicado à justiça e ações realizadas a serviço da comunidade,

– um discurso que nunca pode enganar,

– uma disposição interior que acolhe com amor toda conjunção de eventos, reconhecendo-a como necessária, como familiar, como decorrente de um tão grande princípio, de uma tão grande fonte” (IV,33,3).

Ao lado dessas formulações explícitas, encontram-se sob diferentes formas numerosas alusões às três disciplinas. Assim, Marco Aurélio enumera uma tríade de virtudes: “verdade”, “justiça”, “temperança” (XII,15), ou “ausência de precipitação no julgamento”, “amor aos homens”, “disposição a seguir os deuses” (III,9,2), que correspondem às três regras de vida. Acontece também que apenas duas ou mesmo uma das três disciplinas aparecem. Por exemplo (IV,22):

“Por ocasião de cada impulso para a ação, cumprir a justiça, e, por ocasião de cada representação, conservar dela apenas o que corresponde exatamente à realidade” [reconhece-se aqui a disciplina da ação e a do julgamento].

ou (X,11,3):

“Ele se contenta com duas coisas: realizar com justiça a ação presente, amar o destino que, presentemente, lhe é dado em partilha.”

ou ainda (VIII,23):

“Estou realizando uma ação? Eu a realizo, relacionando-a ao bem dos homens. Acontece-me algo? Eu o acolho relacionando o que me acontece aos deuses e à fonte de todas as coisas a partir da qual se forma a trama dos eventos”, [reconhece-se aqui a disciplina da ação e a do desejo].

Frequentemente, um único tema é evocado, como a disciplina do desejo (VII,57):

“Amar apenas o evento que nos vem ao encontro e que nos é ligado pelo Destino.”

ou a disciplina do julgamento (IV,7):

“Suprima o julgamento de valor (que você adiciona) e eis suprimido: ‘Fui injustiçado.’ Suprima ‘Fui injustiçado’ e eis a injustiça suprimida.”

ou ainda a disciplina do impulso (XII,20):

“Primeiramente: nada ao acaso, nada que não se refira a um fim. Em segundo lugar: não relacionar suas ações a nada além de um fim que sirva à comunidade dos homens.”

Portanto, assim como as Meditações retomam isoladamente, em forma breve ou desenvolvida, os diferentes dogmas, dos quais alguns capítulos fornecem listas mais ou menos longas, da mesma forma, elas repetem incansavelmente a formulação, seja concisa ou mais extensa, das três regras de vida, que se encontram reunidas por completo em certos capítulos. No livro III, que se esforça, como veremos, em fazer, de forma desenvolvida, o retrato ideal do homem de bem, as três regras de vida, que correspondem precisamente ao comportamento deste, são expostas de forma muito detalhada. Inversamente, pode-se encontrar, misturadas com outras exortações a elas relacionadas, as três regras de vida apresentadas de forma tão concisa que chega a ser quase enigmática:

“Apaga essa representação [disciplina do julgamento].

Para essa agitação de marionete [disciplina da ação].

Circunscreve o momento presente do tempo.

Reconhece o que te acontece a ti ou a outro [disciplina do consentimento ao Destino].

Divide e analisa o objeto em ‘causal’ e ‘material’.

Pensa na tua última hora.

O mal cometido por esse homem, deixa-o onde a falta foi cometida” (VII,29).

Essas três disciplinas de vida são verdadeiramente a chave das Meditações de Marco Aurélio. É de fato em torno de cada uma delas que se organizam, que se cristalizam os diferentes dogmas de que falamos. À disciplina do julgamento se ligam os dogmas que afirmam a liberdade de julgar, a possibilidade que o homem tem de criticar e modificar seu próprio pensamento; em torno da disciplina que dirige nossa atitude em relação aos eventos exteriores se agrupam todos os teoremas sobre a causalidade da Natureza universal; enfim, a disciplina da ação se nutre de todas as proposições teóricas relativas à atração mútua que une os seres racionais.

Finalmente, percebe-se que, por trás de uma desordem aparente, pode-se discernir nas Meditações um sistema conceitual extremamente rigoroso, do qual teremos que descrever em detalhe a estrutura.

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