Hadot (PHCI) – Isso que depende de nós

PHCI

Do princípio absolutamente primeiro segundo o qual só há bem o bem moral e mal o mal moral (II,1,3), resulta que nem a dor nem o prazer são males (IV,3,6; XII,8), que a única vergonha é o mal moral (II,1,3), que a falta cometida contra nós não nos afeta (II,1,3; XII,26), mas que quem comete uma falta só faz mal a si mesmo (IV,26,3) e que ela não está em outro lugar senão nele (VII,29,7; XII,26). Resulta também que não posso sofrer absolutamente nenhum dano por parte dos outros (II,1,3; VII,22,2).

Dos princípios gerais: só o que depende de nós pode ser bem ou mal, e: nosso julgamento e nosso assentimento dependem de nós (XII,22), resulta que só pode haver mal e perturbação para nós em nosso próprio julgamento, ou seja, na maneira como representamos as coisas (IV,3,10; XI,18,11); o homem é o autor de sua própria perturbação (IV,26,2; XII,8). Tudo é, portanto, questão de julgamento (XII,8; XII,22; XII,26). O intelecto é independente do corpo (IV,3,6), e as coisas não vêm até nós para nos perturbar (IV,3,10). Se tudo é questão de julgamento, toda falta é na verdade um falso julgamento e procede da ignorância (II,1,2; IV,3,4; XI,18,4-5).

Na enumeração de kephalaia que se encontra no livro XI (XI,18,2), Marco Aurélio diz a si mesmo: “Volta mais alto, a partir do princípio: se rejeitamos os átomos, é a Natureza que governa o Todo”, e na que se encontra no livro IV (IV,3,5): “Lembra-te da disjuntiva: ou a providência ou os átomos.” Essas breves menções de um princípio supostamente conhecido deixam entrever que Marco Aurélio está mais uma vez aludindo a um ensino que recebeu e que, colocando frente a frente a posição epicurista (os átomos) e a posição estoica (Natureza e providência), concluía em favor desta última. Teremos que retomar isso. Por ora, basta-nos dizer que, a partir do dogma que afirma uma unidade, uma racionalidade do mundo, muitas consequências podem ser tiradas, às quais Marco Aurélio alude em suas séries de kephalaia. Tudo vem da Natureza universal e de acordo com a vontade da Natureza universal (XII,26), até mesmo a maldade dos homens (XI,18,24), que é uma consequência necessária do dom da liberdade. Tudo acontece de acordo com o Destino (IV,26,4): é, portanto, de acordo com a ordem do universo que todas as coisas se transformam sem cessar (IV,3,11; XII,21), mas também se repetem sem cessar (XII,26), e que devemos morrer (IV,3,4 e XI,18,10). A Razão universalforma e energia a uma matéria dócil, mas sem força; é por isso que em todas as coisas é preciso distinguir o causal (a razão) e o material (XII,8 e XII,18). É da Razão universal que provém a razão comum a todos os homens e que garante seu parentesco, que não é uma comunidade de sangue ou semente (II,1,3; XII,26). É por isso que os homens são feitos uns para os outros (II,1,4; IV,3,4; XI,18,1-2).

 

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