PHCI
Mas não basta “fazer retiro” voltando frequentemente a esses dogmas para reorientar sua ação (pois, na arte de viver, não se deve fazer nada que não esteja de acordo com “os teoremas da arte”, IV,2), é preciso também remontar frequentemente a seus fundamentos teóricos. Marco Aurélio expressa claramente essa necessidade em um texto do livro X que foi mal compreendido por muitos intérpretes (X,9). É preciso distinguir nele dois pensamentos diferentes. O primeiro é uma descrição condensada e brutal da infelicidade da condição humana quando não é guiada pela razão:
“Bufonaria e luta sangrenta; agitação e torpor; escravidão de cada dia!”
Depois vem outro pensamento, totalmente independente do anterior, que se refere à importância da teoria:
“Desvanecer-se-ão rapidamente todos os teus belos dogmas sagrados, que pensas sem fundamentá-los em uma ciência da Natureza e que depois abandonas. Mas doravante é preciso ver e praticar tudo de tal modo que se cumpra o que exigem as circunstâncias presentes, mas que ao mesmo tempo esteja sempre presente de maneira eficaz o fundamento teórico de tua ação e que conserves sempre em ti, latente, mas não enterrada, a confiança em si que a ciência aplicada a cada caso particular proporciona.”
É preciso, portanto, não apenas agir de acordo com os teoremas da arte de viver e os dogmas fundamentais, mas também mantendo presentes na consciência os fundamentos teóricos que os justificam – o que Marco Aurélio chama de “ciência da Natureza”, porque, no final, todos os princípios de vida se fundamentam no conhecimento da Natureza; sem isso, as fórmulas dos dogmas, mesmo frequentemente repetidas, se esvaziarão de sentido.
É por isso que Marco Aurélio utiliza um terceiro modo de formulação dos dogmas. Desta vez, trata-se de reconstruir a argumentação que os justifica, ou mesmo refletir sobre as dificuldades que podem suscitar. Por exemplo, Marco Aurélio, como vimos, aludia sem citar a todas as provas que demonstram que o mundo é como uma Cidade (IV,3,5), fórmula que acarretava toda uma atitude em relação aos outros homens e aos eventos. Mas em outro lugar, ele fundamenta essa fórmula em um raciocínio complexo, um sorites, que desenvolve e que pode ser resumido da seguinte maneira: É uma cidade um grupo de seres submetidos às mesmas leis. Ora, o mundo é um grupo de seres submetidos às mesmas leis, ou seja, à lei da Razão. Portanto, o mundo é uma Cidade (IV,4). Esse raciocínio era tradicional no estoicismo: encontra-se traço dele, por exemplo, em Cícero. Em outro lugar, Marco Aurélio diz que é preciso impregnar o espírito graças aos raciocínios, ou seja, às sequências de representações (V,16,1), e propõe demonstrações, uma das quais também toma a forma de um sorites.
Mas esse trabalho teórico não consiste apenas em reproduzir uma simples sequência de raciocínios: pode assumir a forma de desenvolvimentos de aparência literária e retórica ou de discussões mais técnicas sobre aporias. Por exemplo, o dogma “Tudo acontece de acordo com a Natureza universal” (XII,26,1) é apresentado de uma maneira, poder-se-ia dizer, muito orquestrada em V,8, por exemplo, mas também em VII,9:
“Todas as coisas se encadeiam reciprocamente, e sua ligação é sagrada: de certo modo, nenhuma coisa é estranha a outra: tudo está coordenado e tudo contribui para a ordem de um mesmo mundo; um só mundo resulta de tudo, um só Deus está em tudo, uma só substância, uma só lei, que é a Razão comum a todos os seres inteligentes, uma só verdade.”
Esse tema da unidade do mundo fundada na unidade de sua origem é frequentemente retomado em termos análogos (VI,38; XII,29), mas também é discutido, seja de maneira esquemática, seja de maneira mais diluída, nos muitos textos (IV,27; VI,10; VI,44; VII,75; VIII,18; IX,28; IX,39; X,6-7) em que aparece o que Marco Aurélio chama de disjuntiva: ou átomos (é a dispersão epicurista) ou uma Natureza (é a unidade estoica).
Muitos outros pontos capitais são assim estudados em desenvolvimentos relativamente longos, como a atração mútua que os seres racionais sentem uns pelos outros e que explica por que os homens são feitos uns para os outros (IX,9), ou ainda o dogma que afirma que nada pode obstruir o intelecto e a razão (X,33).