User Tools

Site Tools


wunenburger:fenomenologia-do-suprassensivel

Fenomenologia do suprassensível

Wunenburger1997

Um dos prolongamentos mais originais da fenomenologia da imagem encontra-se provavelmente nas suas aplicações às representações religiosas. As imagens de realidades sobrenaturais, invisíveis, suportes dos mitos e ritos, deram origem a abordagens simbólicas, hermenêuticas, mas também foram compreendidas como intencionalidades da consciência. Assim, grandes correntes da filosofia religiosa (R. Otto) ou da religião comparada (Van der Leeuw, Eliade) apropriaram-se do método fenomenológico para descrever, do ponto de vista dos eventos da consciência, os fenômenos constitutivos da vida religiosa. As imagens dos deuses, as representações de objetos considerados sagrados, só podem ser compreendidas se restituirmos a atitude específica da consciência simbólica, que visa precisamente, através de uma forma visível, uma surrealidade invisível. Desse modo, abre-se à inteligibilidade uma esfera de representações que excedem a doação das coisas naturais, que se referem a manifestações, no psiquismo ou na alma, de realidades que não podem ser reduzidas a ficções ou alucinações. Ao relacionar-se com imagens sobrenaturais, a consciência corporifica seres, torna-os visíveis ou sensíveis, experimenta a sua presença através de representações que se impõem ao sujeito.

H. Corbin colocou assim, a serviço da compreensão das teologias visionárias (neoplatônicas no Ocidente ou xiitas no Oriente), uma abordagem propriamente fenomenológica. Esses afrescos espirituais apresentam-se, por um lado, como teofanias proféticas, revelações pessoais de Deus na alma, e, por outro, como gnoses salvíficas (conhecimento interior do Deus oculto para alcançar o encontro com Ele). A vida espiritual que nelas se desdobra assenta numa hierarquia metafísica de três níveis de realidade: o de um mundo inteligível, do Uno divino, o de um mundo sensível ao qual pertencemos através dos nossos sentidos, e, finalmente, o de uma realidade intermediária na qual o mundo inteligível se fenomenaliza segundo figuras plurais. O primeiro é acessível ao intelecto puro, o segundo à percepção sensorial, o terceiro a uma imaginação visionária. Para Molla Sadra, por exemplo: “Sabe que uma mesma quididade tem três modos de existência, dos quais alguns são mais fortes ou intensos que os outros… Existe outro mundo intermediário entre os dois mundos precedentes (inteligível e material), um mundo que a alma cria e instaura porque ela é a Imagem do Criador, quanto à sua essência, seus atributos e suas operações. Este mundo é esse 'reino da Alma'… um mundo que contém as imagens das substâncias e dos acidentes, tanto imateriais como materiais, ou melhor dizendo, essas substâncias e esses acidentes no seu estado ou modo de ser imaginal. A existência das formas das coisas para a alma, a sua manifestação de uma maneira que não manifesta os seus efeitos sensíveis exteriores, é isso que se chama existência mental e epifania imaginal.” ] Não se podem, portanto, compreender as imagens desse mundo intermediário sem distinguir, fenomenologicamente, dois tipos de imagens: as provenientes de uma imaginação psicofisiológica, inseparável da constituição do sujeito, e que cria ficções irreais, e as produzidas por uma imaginação criadora verdadeira, separável do sujeito, autônoma e subsistente em si mesma, que permite oferecer à consciência intuitiva representações não mais imaginárias, mas imaginais ]. Comentando as concepções de Ibn Arabi, H. Corbin observa: “O fato de essas Imagens 'separáveis' subsistirem num mundo que lhes é próprio, e de, consequentemente, a Imaginação onde elas se produzem ser uma 'Presença' que tem o estatuto de uma 'essência', perpetuamente apta a acolher as ideias e os espíritos, a dar-lhes o 'corpo de aparição' que permite a sua epifania, tudo isso atesta que estamos tão longe quanto possível de qualquer 'psicologismo'.” ] Assim, os espaços paradisíacos, as Cidades divinas, os anjos, que florescem tanto nos textos religiosos visionários, constituem de fato manifestações imaginais indiretas do Absoluto divino. A descrição fenomenológica dessas visões revela, portanto, para além da dualidade do real e do irreal, uma autêntica realidade imaginal, um mundo próprio onde o espírito se corporifica e os corpos se espiritualizam (“mundus imaginalis”). A consciência é, assim, o lugar de uma experiência interior de corpos espirituais (ou corpos de ressurreição) e de espíritos que se tipificam em corpos imateriais. Inversamente, essas imagens, que correspondem a um correlato noemático, a um substrato ontológico, servem à alma como formas mediadoras para se libertar do seu condicionamento puramente empírico e para se transformar a si mesma antes de acceder à visão direta de Deus. Esse percurso anagógico, durante o qual o sujeito busca a figura divina, pertence então a uma disciplina de compreensão das imagens, dos seus sentidos múltiplos e ocultos, que se aproxima novamente da hermenêutica. A alma pode encontrar-se na presença de histórias e espaços imateriais mas sensíveis, cujo sentido imanente a reconduz, por um ato espiritual hermenêutico, a arquétipos ou essências noéticas. A imaginação espiritual aparece como um poder não empírico da alma pelo qual ela atualiza e ativa Formas mediadoras, mas instauradoras de sentido oculto, de revelação de uma ordem ontológica superior. Essas Formas desvelam-se na alma em busca de inteligibilidade, da qual são como avanços figurativos. Os seres imaginais, Anjos ou profetas espirituais, não são mais, propriamente falando, analogias de Ideias do mundo inteligível, mas verdadeiras personificações. Essas tipificações imaginais aparecem à consciência numa espécie de face a face onde dois rostos se respondem, em vez de se juntarem um simbolizado e um simbolizante. Ao emanar assim da transcendência inteligível, a Forma imaginal dirige-se a cada um segundo a sua própria capacidade de a receber. Assim, a Forma imaginada não é apenas um termo médio entre o universal e o particular, mas encontra-se como modulada por cada imaginação criadora. Ao atualizar assim o mundo imaginal, a alma procura menos saber qual é a natureza do inteligível em resposta à pergunta “o que é?” (quid est?) do que encontrar aquele que professa o inteligível, em resposta à pergunta “quem é que presentifica a essência?” (qui est?).

Assim, a fenomenologia, nas suas diferentes tematizações, favorece uma reabilitação da imagem, na medida em que ela corresponde a atitudes específicas da consciência, a fenomenalidades próprias, a eventos interiores ao sujeito. Certamente, ela não permite, num plano descritivo, decidir entre concepções empiristas ou transcendentalistas, entre teses psicologizantes ou metafísicas; mas confere, em todo o caso, à imagem uma “natureza” que justifica a priori, pelo menos, que ela possa ser um veículo do sentido.

No término deste estudo, parece que a filosofia contemporânea legou à metodologia de abordagem das imagens instrumentos inéditos, de grande eficácia e pertinência. Mesmo que não devam levar a negligenciar os tratamentos positivistas, permitem certamente compreender melhor a natureza das imagens e também retomar as grandes questões sobre o ser ou a essência das imagens, tal como toda a tradição filosófica, desde os Gregos, as abordou. É esse legado que é preciso agora restituir e assumir à luz dos dados contemporâneos.

/home/mccastro/public_html/sofia/data/pages/wunenburger/fenomenologia-do-suprassensivel.txt · Last modified: by 127.0.0.1