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Wolff (1997) – Dizer o mundo

WOLFF, Francis. Dire le monde. Paris: PUF, 1997

A singularidade ontológica da linguagem e sua condição de aprisionamento reflexivo

  • É simultaneamente uma trivialidade e uma verdade profunda afirmar que a linguagem não se constitui como um objeto filosófico semelhante aos outros, visto que ela jamais pode ser isolada apenas como um objeto de análise, na medida em que permanece, indissociavelmente, o próprio meio dessa análise.
  • Enquanto é perfeitamente possível filosofar sobre a percepção mantendo os olhos cerrados, revela-se impossível investigar a natureza da linguagem sem recorrer à fala, pois nada é pensado distintamente — e, portanto, nem a própria linguagem — à revelia da linguagem, a qual se encontra perpetuamente enredada em suas próprias malhas, tornando talvez quimérica a pretensão de apreendê-la em si mesma, dado que o saber sobre ela é sempre mediado por ela.
  • A linguagem não pode existir como uma coisa inerte nem ser positivada como um mero objeto externo, pois, sendo a condição de possibilidade de todo pensamento, ou ao menos de todo pensamento filosófico, ela só pode ser pensada na medida de sua própria capacidade de se refletir.
  • Ainda que a reflexividade possa caracterizar outros objetos do pensamento, como a razão, o conceito ou a filosofia, a linguagem detém a especificidade radical de não possuir, aparentemente, um exterior, uma vez que tudo se encontra nela imerso; por mais que se tente distanciá-la para observação, ela permanece presente e prévia, de modo que a tentativa de pensar sem linguagem constitui, em si mesma, uma tentativa de linguagem.
  • Por definição, é impossível enunciar o que existiria fora da linguagem, o que a torna não apenas o meio para pensar qualquer objeto, inclusive a si mesma, mas também o meio, o elemento ou o ambiente no qual todo pensamento se doa, não sendo redutível a nada mais, ao passo que tudo é redutível a ela, permitindo a asserção de que tudo o que é passível de ser pensado é linguagem.

A propriedade de fazer mundo e a conciliação impossível entre imanência e totalidade

  • A linguagem manifesta-se como refletora e totalizante, sendo simultaneamente aquilo por meio do que se pensa necessariamente e aquilo em que se pensam todas as coisas, o que implica a constatação de que a linguagem faz mundo; o mundo, analogamente, pode ser considerado como a totalidade do que está fora de nós e o local onde necessariamente estamos, não possuindo exterior e sendo igualmente totalizante.
  • O mundo é reflexivo na medida em que nunca pode ser apenas um objeto estático sem ser também uma relação constitutiva com o que somos, tornando-se inatingível em si mesmo exceto por meio desse vínculo que ele também constitui; somos parte do mundo e estamos nele, assim como tudo o mais.
  • A coexistência dessas duas características — estar no mundo e, simultaneamente, o mundo ser o que está fora de nós e de onde pensamos as coisas — apresenta uma conciliação teoricamente difícil, tal como a reflexividade da linguagem não a impede de tudo englobar; independentemente do modo como se ajustem, é por meio da conjunção dessas duas características, a reflexividade e a totalidade, que a linguagem efetivamente faz mundo.
  • O sensível, por exemplo, não apresenta essa dificuldade, pois constitui tudo o que há fora sem remeter a si mesmo, não sendo pensado sensivelmente, ao contrário da linguagem e do mundo que operam em um fechamento reflexivo.

A consciência como objeto-mundo análogo à linguagem

  • A propriedade de fazer mundo não é exclusiva da linguagem, podendo ser atribuída a outros objetos, como a consciência, à qual se imputa ordinariamente a reflexividade, visto que pensar a consciência é, inevitavelmente, pensar-se a si mesmo, pois todo pensamento é, de certo modo, um fato de consciência.
  • Não se pode envidar esforços para saber o que é a consciência sem ter consciência dela, sendo ela agente e objeto simultaneamente, pois é apenas para uma consciência que uma consciência se dá a pensar; toda consciência de algo remete a si mesma, tornando impossível saber o que ela é em si mesma fora dessa mediação.
  • Revela-se impossível sair da consciência, pois, por mais que se tente pensar fora dela, permanece-se nela, sendo impossível ter consciência do que há em outra consciência; assim, ela é, tal como a linguagem, o lugar onde estão todas as coisas fora de nós e de onde podemos pensá-las, confirmando que a consciência faz mundo.
  • É plausível considerar que a linguagem e a consciência sejam os dois únicos objetos que possuem intrinsecamente a propriedade de fazer mundo, o que explicaria a capacidade de ambos servirem, cada um à sua maneira, como pontos de apoio para pensar o que é imediatamente dado, seja reduzindo a experiência a enunciados atômicos ou a modos de doação a uma consciência.

A história e a sociedade como figuras de apropriação do mundo pelo pensamento

  • O ato de fazer mundo não é apenas uma propriedade intrínseca de certos objetos, mas uma figura pela qual o pensamento pode apreender outros objetos, instalando-os numa posição de consubstancialidade tal que o pensamento não possa existir sem eles ou os reencontre em toda parte como imagem de si mesmo; nesse sentido, pode-se conceber que a história, ou a sociedade, faz mundo.
  • Sob essa perspectiva historicista, tudo se torna história e nenhum objeto se encontra fora dela, sendo todo pensável intrinsecamente histórico, advindo de seu tempo e produto da história; qualquer tentativa de o pensamento escapar à história permanece nela encerrada, pois tal tentativa seria, ela própria, considerada um efeito da história.
  • A história torna-se um objeto totalizante e reflexivo, pois não é apenas objeto, mas, em certo sentido, o sujeito do pensamento, inclusive do pensamento sobre a história, sendo nosso senso histórico produto da própria história que ele nos permite pensar, aprisionando-nos num círculo onde a leitura da história é historicamente determinada, conforme a asserção de M. Foucault de que somos historicamente votados à história.
  • As afirmações de que tudo é linguagem, tudo é consciência ou tudo é história implicam conceitos distintos de totalidade e de pensamento: tomado como pensamento histórico, o pensamento dispensa a consciência; tomado como consciência, pode dispensar a linguagem; a escolha do objeto com o qual o pensamento faz mundo define, em última análise, o que é pensar para o sujeito.
  • Quando um objeto faz mundo, ele deixa de ser um mero objeto para se tornar o fundo sobre o qual todos os outros se destacam e pertencem ao mesmo mundo; se a consciência faz mundo, Deus é uma ideia ou um noema visado; se a linguagem faz mundo, a existência de Deus é um enunciado analisável; se a história faz mundo, a existência de Deus é um evento histórico, como sua morte ou nascimento.

A função de refúgio dos objetos-mundo e o declínio da metafísica clássica

  • Os objetos que fazem mundo constituem excelentes refúgios para o pensamento e, notadamente, para a filosofia, permitindo-lhe não lidar diretamente com as coisas ou objetos do mundo, mas com um objeto substituto que serve de fundo e modo de ser comum para todos os outros, fornecendo um ancoradouro único e uma retirada estratégica para um pensamento que se julgasse incapaz de atingir o mundo diretamente.
  • Tal fenômeno de refúgio pode ser observado na filosofia contemporânea entre aqueles que decretaram a morte da metafísica, de modo análogo a como a música erudita abandonou a tonalidade enquanto a música popular manteve a estrutura tonal; enquanto a filosofia popular continua a questionar se Deus existe ou se a vontade é livre, para muitos filósofos deste século esse modo de interrogação esgotou historicamente seus possíveis.
  • A impossibilidade sentida de responder diretamente a essas questões sobre o mundo conduz à interpretação das respostas dadas pelos grandes sistemas clássicos, transformando a história da filosofia num refúgio onde se interroga indiretamente as maneiras históricas de interrogar as coisas, buscando na história respostas para perguntas que não podem mais ser formuladas diretamente.
  • A história constitui um espelho onde o pensamento, sentindo-se morto em sua relação direta com as coisas, reflete-se e toma seu próprio reflexo como objeto de saber, substituindo as coisas mesmas pelas ideias que foram pensadas sobre elas na história, seja ressituando filosofias em seus contextos, interpretando doutrinas clássicas de Platao, Aristoteles, Descartes ou Leibniz, desconstruindo conceitos ou dissolvendo sistemas na episteme de sua época.

A refelação fenomenológica e analítica como recuperação do mundo

  • Contra o historicismo e outras formas de relativismo ou nominalismo, como o sociologismo, existem alternativas positivas que buscam salvar a filosofia de sua morte anunciada na cena da história, recorrendo a objetos que possam servir de pontos de ancoragem e fazer mundo por si mesmos, como a consciência e a linguagem.
  • O questionamento clássico e metafísico pode ser salvo e renovado se todas as realidades interrogadas se tornarem modalidades de um mesmo mundo visto a partir desses objetos-mundo, permitindo que as grandes refundações da filosofia do século XX, tanto pela fenomenologia quanto pelas filosofias analíticas, fossem realizadas sobre a consciência e a linguagem, respectivamente.
  • A redução fenomenológica e a análise lógica desempenharam papéis análogos ao reencontrar a unidade de um mundo perdido e fragmentado pelas ciências, resolvendo a experiência em elementos fundamentais cuja homogeneidade é garantida pela unidade focal da consciência ou da linguagem; tais correntes não se identificam meramente com a psicologia ou a linguística, mas tomam o mundo ele mesmo por objeto através do ponto de vista reflexivo, permitindo-lhes identificar-se legitimamente com a filosofia inteira.

A paradoxal transparência da linguagem e da consciência: jaulas abertas ao exterior

  • Ainda que a consciência e a linguagem mereçam tratamento particular por sua capacidade de se refletir e reunir todos os outros objetos, fazendo mundo porque tudo está dentro deles, é preciso retificar que eles fazem mundo também, e sobretudo, porque tudo está fora; estamos encerrados na linguagem ou na consciência sem poder sair, mas, paradoxalmente, eles são inteiramente voltados para o exterior.
  • A intencionalidade define essa condição, pois ter consciência é sempre ter consciência de algo e falar é necessariamente falar de algo; ter consciência de uma árvore ou falar dela não é relacionar-se com uma ideia ou uma palavra, mas visar a própria coisa.
  • A consciência e a linguagem funcionam como uma jaula transparente onde tudo está fora, mas de onde é impossível sair; a claridade que emana deles permite ver o exterior sob uma mesma luz, mas no interior nada há para ver senão a própria luz que ali se reflete, de modo que eles só encerram o mundo em si porque estão inteiramente no mundo.

A distinção entre o real percebido e o mundo ordenado pela linguagem

  • Existe uma relação íntima entre a linguagem e o mundo, sugerindo que a maneira como o mundo nos aparece transparece na linguagem, pois o mundo sem a linguagem seria apenas o percebido, o qual, embora dotado de formas, qualidades sensíveis e uma organização interna local (como a extensão visual ou duração auditiva), não atinge o nível de ordem imposto pela linguagem.
  • O percebido não faz mundo porque lhe falta a co-pertencença de todas as coisas a uma mesma estrutura de conjunto, o reenvio de todo dado real a um possível, a coerência das partes e a conexão das sequências, bem como a exterioridade objetiva estruturada em conceitos pela partilha da experiência; a objetividade dificilmente seria conceptualizável sem o acordo intersubjetivo permitido pela linguagem.
  • O mundo é a ordem totalizável do real e a unidade para a qual tendem todas as experiências, sendo pensado como um todo sobre o qual podemos raciocinar e trocar, o que implica que ele é estruturado como uma linguagem e dado por ela; sem a linguagem, teríamos a realidade plena (sem nada e sem possível), mas não o mundo.
  • A imaginação do real sem a ordem da linguagem, como ocorre no sonho, revela um cenário onde há existência, sensações e afetos, mas falta permanência e continuidade, onde a identidade é fluida e a discriminação entre interior e exterior, privado e público, torna-se impossível sem um outro a quem falar; a introdução de nomes, verbos, gramática e interlocutores transforma o real em mundo ordenado e comum, de sorte que a ordem do mundo é linguagem.

A posição crítica e a superação do dualismo entre linguagem e mundo

  • Para caracterizar a maneira como o mundo aparece em seus contornos gerais, deve-se adotar uma regra de método que reconhece a impossibilidade de interrogar o mundo diretamente como fazia a metafísica, exigindo a interrogação de um objeto-mundo que lhe faça as vezes, como a linguagem; essa regra justifica-se pelo fato de que o real não seria mundo para nós sem linguagem e, de fato, não podemos interrogar o mundo senão através dela.
  • A dificuldade em distinguir o que cabe ao mundo e o que cabe à linguagem resolve-se assumindo uma posição crítica, análoga a um realismo interno conforme o vocabulário de H. Putnam, que postula a falta de sentido em separar o que depende da linguagem do que depende do mundo.
  • A tese crítica estabelece que a linguagem enquanto tal, entendida não como línguas particulares mas como as condições gerais de comunicação, é o mundo enquanto tal, entendido como as condições gerais de aparição do real como ordem total e comum; utiliza-se conceitos como linguagem-mundo ou palavra-mundo para significar a impossibilidade de distinção.

O debate entre dogmatismo metafísico e relativismo linguístico

  • A tese crítica defendida propõe-se a evitar tanto o dogmatismo metafísico quanto o relativismo linguístico na resposta à questão sobre o que podemos dizer do mundo.
  • O dogmatismo, ou ponto de vista externalista, concebe o mundo como constituído de entidades fixas e a linguagem apenas como um meio de dizer o que o mundo é em si; em contrapartida, o relativismo argumenta que cada língua determina uma visão de mundo intransponível, levando a um provincialismo ontológico.
  • Embora o dogmatista alegue a existência de constantes no mundo que escapam ao relativismo das línguas particulares, o relativista pode recuar para um ceticismo que afirma que tudo o que dizemos já está inscrito na forma a priori da linguagem em geral ou da pensamento, impedindo o acesso à ordem mesma do mundo.
  • A posição crítica admite a verdade parcial de ambas as teses: concede ao dogmatismo que dizemos o que há no mundo, mas acorda com o ceticismo que estamos sempre presos na linguagem que o diz; a forma da linguagem é a própria ordem do mundo, tornando inútil tentar separar o que retorna a um ou a outro.

A distinção entre fato e direito e a ilusão metafísica necessária

  • A distinção entre fato e direito é crucial para superar o impasse: o que depende das línguas particulares é um fato que pode ser obstáculo, mas o que depende da linguagem como condição geral de comunicabilidade é de direito; se existem universais da linguagem, eles são as condições de possibilidade para que possamos falar do mundo.
  • O dogmatismo é vítima de uma ilusão metafísica necessária, consubstancial ao uso da linguagem, que nos faz crer que o mundo existe em si mesmo independentemente de ser dito; essa ilusão deriva da transparência da linguagem que nos projeta para o mundo ao mesmo tempo em que nos mantém nela, sendo natural crer que o mundo dito existe sem ser dito.
  • O sentido crítico da tese de que o mundo é estruturado como a linguagem reside na constatação de que o mundo aparente é tudo o que podemos dizer, e que do mundo em si nada podemos dizer; é impossível saber se há coisas no mundo porque podemos nomeá-las ou se as nomeamos porque elas existem, bastando, para saber o que é o mundo, saber como necessariamente o dizemos.
  • Essa posição reorienta a investigação da ontologia descritiva, próxima à de P. F. Strawson em Individuos, para uma questão crítica que não pergunta o que constitui o mundo, mas o que o mundo deve ser para que possamos dizê-lo, convertendo a posição metafísica em crítica e investigando o que a linguagem deve ser para que esse mundo apareça, abrindo caminho para interrogações éticas, lógicas e de ficção crítica sobre como dizer o mundo para compreendê-lo e nele agir.
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