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Onfray (2025) – Spengler, homem e técnica

ONFRAY, Michel. L’été sans bord Journal hédoniste. Paris: Albin Michel, 2025.

A Recepção de Spengler e a Ontologia da Decadência

Oswald Spengler permanece uma figura paradoxal no panorama intelectual, situando-se como um desconhecido célebre que poucos citam e ainda menos leram, servindo de contraponto num tempo dominado pelo conformismo ideológico que recusa a noção de decadência em favor de uma negatividade dialética destinada a gerar novas positividades, sustentando a ficção de que as civilizações não morrem, mas se transformam perpetuamente num mundo universalista; o termo decadentista converteu-se num insulto destinado a paralisar o pensamento, tal como ocorre com outros rótulos contemporâneos, ignorando-se que o analista que descreve o declínio e a morte de uma cultura não é, por osmose, um decadente, da mesma forma que um oncologista não é a doença que diagnostica.

A associação automática do pensamento de Spengler ao nacional-socialismo constitui um erro categórico derivado da utilização de conceitos nietzschianos como a força, a besta de rapina, a predação e o sangue em 1931, momento em que o nazismo era apenas uma opinião partidária e não uma filosofia de Estado, ignorando-se deliberadamente que a filosofia de Friedrich Nietzsche era radicalmente antinazi pelo seu filossemitismo, pelo seu desprezo ao Estado e pelo seu fatalismo ontológico que impede a engenharia social desejada pelos totalitarismos; Spengler agrava a sua posição perante a intelectualidade dominante ao criticar o marxismo, o leninismo e o materialismo mecanista, sendo tratado com um rigor que não se aplica aos antigos comunistas ou trotskistas, cujos passados de colaboração com ideologias de crimes em massa são esquecidos, enquanto se mantém uma condenação imprescritível sobre pensadores de direita, evidenciando um regime de memória seletiva onde existem mortos cujas causas são validadas e outros cujas causas são condenadas.

É imperativo ressaltar, para fins de saneamento histórico, que o autor de O Declínio do Oeste nunca foi nazi e manifestou publicamente a sua oposição logo em 1933 na obra Anos Decisivos, recusando cargos oferecidos pelo regime na Universidade de Leipzig, negando-se a redigir propaganda eleitoral a pedido de Joseph Goebbels, compondo elogios fúnebres a vítimas dos expurgos políticos de 1934 e abandonando a administração dos arquivos de Nietzsche em protesto contra a apropriação indébita do filósofo pelo regime, falecendo em 1936 sob rumores de envenenamento; a sua ostracização contrasta com a reabilitação de figuras como Carl Schmitt, que apoiou francamente o regime, mas é citado sem reservas por teóricos de esquerda como Giorgio Agamben, Alain Badiou, Massimo Cacciari ou Antonio Negri.

Metafísica da Técnica e Vitalismo Materialista

A leitura de O Homem e a Técnica exige a compreensão de um materialismo vitalista que, ao contrário do materialismo marxista e mecanista dominante que reduz a vida à soma dos átomos, postula que o vínculo energético e imaterial entre os elementos é superior às entidades separadas, aproximando Spengler mais dos mistérios da biologia celular e de uma proto-visão quântica do que da mecânica clássica; neste sentido, a técnica não é uma categoria sociológica, mas uma tática vital e uma atividade da alma, onde a História obedece a uma força inumana e não à vontade das massas, sendo a invenção de procedimentos técnicos a resposta genealógica para a adaptação e a luta pela sobrevivência dos fortes contra os fracos.

A máquina representa o instrumento por excelência da ação contra a natureza, permitindo ao homem tornar-se mestre e possuidor do mundo natural, conforme a terminologia de René Descartes, rejeitando-se em Spengler a dicotomia kantiana entre o numênico e o fenomênico ou a separação platônica entre alma e corpo que atravessa o pensamento ocidental de Pitágoras a Martin Heidegger e Sigmund Freud; a antropologia spengleriana é estritamente nietzschiana, substituindo a luta de classes pela luta biológica entre herbívoros e carnívoros, onde o homem é definido como um animal de rapina e a história como o conflito entre os que vivem em rebanho e os solitários predadores, sendo a moral contemporânea uma construção dos fracos para domar a força vital dos fortes.

A técnica humana distingue-se da animal pela sua capacidade evolutiva e pela primazia da visão sobre o olfato, permitindo ao homem visualizar o campo de batalha e projetar o futuro, sendo a mão humana a ferramenta primordial onde se concentra o dinamismo vital e cuja aparição súbita direciona o destino da espécie; seguindo Arthur Schopenhauer, o indivíduo é compreendido como uma ficção a serviço da realidade da espécie, agindo não por liberdade, mas por obediência a impulsos atávicos, onde o olho estabelece a causalidade e a mão executa a finalidade, validando a máxima de que o olho age e a mão pensa, sendo a alma a soma de energias concentradas nestes atos e a arte a genealogia de uma antinatureza trágica.

A Estrutura Hierárquica da Sociedade e do Estado

A transição da potência das singularidades para a força das comunidades ocorre com o advento da linguagem e da empresa coletiva, situados temporalmente por volta do quinto milênio antes de Cristo com a domesticação e a agricultura, onde a fala surge por geração espontânea e necessidade vital para expressar comando e obediência; a separação fundamental entre o trabalho manual e o intelectual consolida-se quando o cérebro empreendedor da palavra instrui a mão executora, estabelecendo uma hierarquia natural e inata entre os nascidos para comandar e os nascidos para servir, uma constatação factual que, embora moralmente repugnante à sensibilidade igualitária moderna, define a estrutura de todas as civilizações em ascensão.

A organização social evolui da horda para o Estado através da guerra, de onde emana a lei como imposição do vencedor sobre o vencido, confirmando a tese de A Genealogia da Moral de que a paz e o direito são construções baseadas na lei do mais forte; tal como existem indivíduos líderes e subalternos, existem povos conquistadores e povos submissos, sendo a sobrevivência da comunidade e a sua perseverança no ser mais relevantes do que a vida dos indivíduos, o que justifica historicamente a escravidão como a necessidade da elite de explorar forças físicas alheias para a realização de grandes obras, uma realidade situada para além do bem e do mal.

O individualismo surge como uma reação defensiva do homem de rapina contra a domesticação das massas, gerando figuras existenciais como o conquistador, o eremita ou o criminoso, enquanto a civilização é permeada pelo ressentimento dos inferiores contra os superiores; Spengler observa que a cultura fáustica europeia, marcada pelo triunfo do pensamento técnico, obedece a um ciclo de vida limitado, onde as invenções acabam por infletir o destino da civilização, privilegiando os factos brutos sobre as concepções intelectuais.

O Triunfo da Tecnologia Fáustica e o Ocaso

A contemporaneidade tecnológica, exemplificada pela informática, corrobora as teses spenglerianas ao demonstrar que revoluções radicais são operadas por minorias de exceção, como os fundadores de impérios digitais que, a partir de garagens, domesticaram a humanidade sob novas máquinas; figuras como Steve Jobs, Steve Wozniak, Ronald Wayne, Larry Page, Serguei Brin, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos encarnam o arquétipo do animal de rapina que mantém a vítima palpitante sob as suas garras, provando que a técnica permanece uma questão de predação e domínio de uma elite sobre a massa, independentemente da retórica democrática vigente.

Nas décadas iniciais do século XX, já se vislumbrava o perigo ecológico e a náusea das máquinas sentida pela própria alma fáustica, um estado mental acompanhado por sintomas de decadência como o culto ao lazer, ao desporto, ao ocultismo e às religiosidades orientais, sinalizando a fuga dos líderes natos diante da mecanização e a diminuição da inteligência coletiva; observa-se também o fenômeno do retorno das armas contra os criadores, onde os povos outrora dominados apropriam-se da técnica dos carnívoros para combater a civilização fáustica, encerrando o ciclo colonialista pela via da guerra tecnológica.

Diante do destino inevitável do declínio civilizacional, a única postura ética digna, segundo Spengler, é a escolha de Aquiles, preferindo-se uma vida breve, repleta de ação e grandeza, a uma existência prolongada e vazia, rejeitando-se a esperança como uma forma de cobardia; a morte honrosa permanece como o único bem inalienável do homem, uma conclusão selada pela própria biografia de Spengler, que faleceu precocemente aos cinquenta e cinco anos, cumprindo o destino trágico que teorizou.

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