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O sentido do devir e o devir do sentido

Hottois1993

A filosofia de G. Simondon é uma filosofia do devir, da diferença, da liberdade e da singularidade, mas também — e como! — do manter-junto, do sentido, da razão e do universal, desde que não se reduza estes à lógica que bloqueie o devir e, com isso, a possibilidade do sentido. O pensamento simondoniano trabalha para tecer entre essas duas séries de termos — que um endurecimento identitário tornaria facilmente e abusivamente antitéticos, totalmente incompatíveis —, para tecer em seu limite, que é sua relação, uma tela simbólica. Sua trama principal é formada pelos conceitos analógicos que percorrem toda a obra e dos quais evocamos aspectos: individuação, transdução, metastabilidade, informação, pré-individual, virtual, fase…

A falha suprema é “falha contra o devir” (MEOT, p. 231): o pecado do fechamento e da estabilidade definitiva. Essa falha ou erro (num certo nível, como veremos, a ética e a ontologia devem convergir) apresenta dois rostos: o da identificação massiva que unifica tudo num símbolo totalitário imóvel (que pode ser uma religião instituída, uma ideologia, a tecnocracia etc.) e o da diferenciação radical que isola abruptamente, dissocia de modo irreparável, rompe toda ponte com o outro. Curiosamente, esses dois aspectos antitéticos da negação do devir e do manter-junto são ainda complementares: um corresponde a uma sobresimbolização, o outro a uma dessimbolização; a primeira é a absolutização tautológica do mesmo, a segunda a absolutização heterológica do outro.

Para que o devir tenha sentido e o sentido devir — advenha sempre a novos patamares —, é preciso conceber o real e o pensamento como simbólicos, ou seja, sempre parciais, defasados, mas ao mesmo tempo sempre alusivos — por sua história, sua presença e seu futuro — da totalidade, da unidade sobredeterminada que é a origem e o centro de todas as coisas.

Reconhecer a simbolidade nos parece a condição sine qua non para compreender o pensamento simondoniano: o mundo e o tempo são intrinsecamente simbólicos, e mesmo simbólicos entre si: o ser-devir é simbolização ]. Para que o sentido do devir preserve o devir do sentido, é preciso renunciar não apenas a todo pensamento onto-lógico das essências (formas, significações estáveis, fora do devir), mas ainda a todo pensamento escatológico que pretenderia antecipar, substancial ou formalmente, a norma do devir. Certamente, muitas páginas de Simondon e, talvez, o espírito da obra onde domina a preocupação de reunir, reconciliar, deixam entender que o Fim do ser-devir deveria coincidir com uma reapropriação da unidade originária. A única diferença sendo que a sobredeterminação tensional, a supersaturação, que está na origem do devir, das dissociações da unidade — Simondon fala do “mais que um” — em fases simbólicas, seria reabsorvida no Fim. Mas toda representação desse estado, toda identificação, todo projeto de instituí-lo realmente, parecem condenados ao impasse de não serem senão bloqueio do devir, estabilidade morta. Para que a vida e o sentido permaneçam, é preciso que o estado de estabilidade, que se busca quando se está em crise e que as tensões são tais que uma explosão destrutiva ameaça, revele-se — uma vez alcançado — não ser senão um estado metastável, não definitivo, aberto.

De fato e de direito, o sentido do devir e o devir do sentido se jogam no nível da individuação. Eles são a individuação em curso. A intuição do que é preciso fazer nesse lugar metastável — ou seja, aqui e agora — é arriscada, mas não totalmente cega. É preciso que ela nos apresse para onde os riscos de repetição esclerótica e de dissociação irreparável culminam: onde a tensão do mesmo e do outro é tão aguda que ameaça a própria possibilidade de uma continuação do devir. Parece-nos que, muito cedo, Simondon acreditou identificar esse lugar como o da incompatibilidade, amplamente sentida, expressa e repetida nessa segunda metade do século XX, entre a técnica e a cultura. Simondon viu perfeitamente que a técnica aparece como o outro do simbólico realizado na cultura tradicional. E ele quer mostrar que essa alteridade e a dissociação que resulta de sua percepção não são absolutas nem insuperáveis. A técnica contemporânea parece sem dúvida legitimamente estranha em relação a certos símbolos, mas apenas porque esses símbolos estão mortos, porque perderam sua metastabilidade evolutiva. A individuação simbólica operada pela cultura tradicional, que quer ser toda a cultura, cortou toda relação com o fundo de pré-individualidade, de potencial virtual real que está nela e que é correlativo da própria capacidade de simbolizar. A técnica não é, para Simondon, o outro de todo símbolo; ela não cai nem conduz fora da simbolização. Acreditar nisso seria uma falha contra o devir e contra o sentido: contra o homem, diríamos, ou seja, contra a fase antropológica do ser-devir que somos. É portanto, hoje, nesse lugar de aparente dissociação que o filósofo deve se pôr a trabalhar para que o sentido (re)nasça justamente onde o não-sentido mais ameaça. O trabalho de simbolização que realizará é para ser concebido como a continuação do devir da individuação — em fase antropológica. Há em Simondon uma “fé” profunda — e a fé é também aquilo que liga — no ser-devir e na filosofia: uma fé propriamente “ontogenealógica” que sustenta a ambição de sua obra.

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