Indivíduo e Individuação em Simondon (Chateau)
JYCVS
“Existem duas vias pelas quais a realidade do ser como indivíduo pode ser abordada: uma via substantialista, considerando o ser como consistindo em sua unidade, dado a si mesmo, inengendrado, resistente ao que não é ele mesmo; uma via hilemórfica, considerando o indivíduo como engendrado pelo encontro de uma forma e de uma matéria ” (ILFI, 23). Estas duas fórmulas são amplamente opostas (uma é monista, a outra é dualista, uma exclui toda gênese, a outra admite uma), mas têm algo em comum, que é aquilo em relação ao qual se formula o problema geral que Simondon se coloca: elas reportam o ser individuado, como aquilo de que é preciso dar conta da individuação, a um princípio de individuação. “Ambas supõem que existe um princípio de individuação anterior à individuação mesma, suscetível de explicá-la, produzi-la, conduzi-la. A partir do indivíduo constituído e dado, esforça-se por remontar às condições de sua existência” (ibid.). Mas, e este é um dos temas diretores do pensamento de Simondon, o indivíduo não deve ser tratado como um absoluto (é “conceder um privilégio ontológico ao ser constituído”), do qual seria preciso dar conta por meio de um princípio de individuação: “o que é um postulado na busca do princípio de individuação, é que a individuação tenha um princípio”. Na própria noção de tal princípio, há algo de contraditório e inútil: este princípio é um termo primeiro, que, como tal, já tem algo de um indivíduo determinado, e não constituiria senão um progresso ilusório na busca daquilo que faz que haja seres individuados. “Mas restaria precisamente mostrar que a ontogênese pode ter como condição primeira um termo primeiro” (ibid.). É preciso então “operar uma inversão na busca do princípio de individuação” (ILFI, 24), e considerar como primordial a operação de individuação mesma a partir da qual o indivíduo vem a existir: a individuação é sem princípio próprio (nenhum princípio de individuação, portanto, mas a individuação mesma como princípio de tudo o que advém). Esta operação não é mais “considerada como coisa a explicar”, mas “como aquilo em que a explicação deve ser encontrada” (ibid.).
O lugar primeiro concedido à operação de individuação como único princípio, ou no lugar de todo princípio, é correlativo de uma rejeição de toda concepção do ser como substância (quer haja uma, duas, ou uma infinidade de substâncias) e do esquema hilemórfico aristotélico. O indivíduo não é mais doravante considerado como uma realidade absoluta e única interessante, mas “como uma realidade relativa, uma certa fase do ser que supõe antes dela uma realidade pré-individual, e que, mesmo após a individuação não existe sozinha, pois a individuação não esgota de uma só vez os potenciais da realidade pré-individual, e, por outro lado, o que a individuação faz aparecer não é apenas o indivíduo mas o par indivíduo-meio” (ILFI, 24-25). A consequência ontológica é maior: “o indivíduo não é todo o ser nem o ser primeiro” (ILFI, 31): se há ser individuado, e se o individuado aparece por uma individuação, então ele vem do ainda não individuado, há do pré-individual no ser. O ser individuado não é “o ser completo”: “fora” (mas será preciso ver o que isso quer dizer no artigo sobre o Ser) do ser individuado, há o ser que não o é, ainda não, o ser pré-individual (não-individuado, indefinido, indeterminado, apeiron). “A individuação deve então ser considerada como resolução parcial e relativa que se manifesta em um sistema contendo potenciais e encerrando uma certa incompatibilidade feita de forças de tensão tanto quanto de impossibilidade de uma interação entre termos extremos das dimensões” (ILFI, 25). A individuação supõe a existência “de um sistema metaestável rico em potenciais” (ILFI, 27; “metaestável” significa que está no limite entre a estabilidade e a instabilidade), onde existem “uma tensão entre dois reais díspares” (ILFI, 314), uma energia potencial, isto é, uma diferença de potencial no interior do sistema (“relação de heterogeneidade, de dissimetria”, ILFI, 67); para dizê-lo de modo imagético, a ligação estreita e auto-sustentada de uma riqueza transbordante e de uma diferenciação interna. O ser pré-individual é “um ser que é mais que uma unidade”. “O ser pré-individual é o ser no qual não existe fase; o ser no seio do qual se realiza uma individuação é aquele no qual uma resolução aparece pela repartição do ser em fases, o que é o devir” (ibid.). O devir não é o que acontece ao ser (como quando se representa o ser como substância), é “uma dimensão do ser”, ele é a operação mesma de individuação em vias de se realizar por “aparecimento de fases no ser que são fases do ser”. A individuação é “operação do ser completo”, “ontogênese”, pela qual se pode “designar o caráter de devir do ser, aquilo pelo qual o ser se torna enquanto é, como ser” (ibid.), não apenas a formação do indivíduo (por oposição à da espécie, como em zoologia), mas gênese de todo o ser, o individuado assim como seu meio próprio e o não-individuado, segundo a nova repartição do ser que a alagmática de cada operação de individuação realiza. Na individuação (ontogênese), o ser pré-individual se desfasa e se individua, mas nunca inteiramente: resta sempre, no ser que é assim individuado, uma parte de pré-individual, que constitui uma “carga associada” ao ser individuado, além de que a operação de individuação de um ser faz aparecer pelo mesmo gesto seu meio associado.
O lugar primeiro concedido à individuação implica que, o indivíduo não sendo mais primeiro, o que é primeiro seja não-individuado, pré-individual, indeterminado, indefinido (apeiron). O que é primeiro é assim a individuação, a operação de individuação. Ora, para ser consequente, não é preciso representá-la ela mesma como um ser individuado ou um termo individuado, isto é, determinado (pois é para isso que se quis substituí-la à hipótese de um ser já individuado como ponto de partida da gênese individuante, inclusive se este ser é um princípio de individuação determinante e portanto determinado); é uma operação que se deve então considerar como indeterminada, da qual só se pode dizer que faz advir do individuado a partir do pré-individual, do determinado a partir do indeterminado. Ela é determinada à medida do termo individuado onde desemboca, mas, se se quer caracterizar como termo aquilo de onde ela parte, notar-se-á que é o indeterminado do pré-individual; é o estado do ser pré-individual (potenciais, tensões, incompatibilidade, disparação, etc., e possibilidades diversas de resolução parcial) em suas relações com o ser já individuado, ele mesmo em relação com seu meio (que se constituiu para ele no curso e pelo fato mesmo da operação de sua individuação), que determina de lugar em lugar (transdutivamente) a operação individuante. A individuação é a operação mesma do pré-individual; é o pré-individual mesmo operando. Isso significa que tudo pode acontecer e de todas as maneiras, sem princípio, no evento da individuação, o que não quer dizer sem determinação. Nenhuma necessidade de um princípio para que o ser individuado advenha, basta que haja individuação; nem para que a individuação advenha, basta que haja pré-individual. O ser é duplo: em si mesmo, não é individuado, mas basta que haja ser para que ele se individue. Consequências: primeiro, tal como Simondon a concebe, a operação individuante é bem, em si mesma, indefinida, indeterminada, ela não esconde um princípio de individuação, contraditório e vão; mas, também, ela não é exclusiva de modo algum do determinismo objetivo (este ponto é importante quando se ocupa nomeadamente do problema onda-corpúsculo na mecânica quântica, ver ILFI, I, cap. 3, 99 e seguintes). Mas ainda, se a operação de individuação, pelo fato de sua indeterminação, deixa todos os determinismos jogar, ela não se confunde com eles, a ontogênese não deve ser confundida com a gênese empírica conhecida cientificamente, que mostra por qual série de causas e efeitos, sob quais condições, se passa de um ser ou antes de um estado determinado a outro. O que faz, na perspectiva de Simondon, que uma realidade seja indivíduo, é que ela foi individuada, ora a individuação não existe no sentido estrito senão como operação do pré-individual, provindo do pré-individual; assim, mesmo se a gênese está sempre já em marcha, e se portanto é sempre a um indivíduo já parcialmente individuado que advém uma nova individuação, o que merece esta qualificação, o que é ontogenético, é propriamente aquilo cuja proveniência apreendida é o pré-individual (o indivíduo é “uma realidade relativa ao pré-individual”: “ele resulta de um estado do ser no qual ele não existia nem como indivíduo nem como princípio de individuação”, ILFI, 25). A gênese, a ontogênese, para Simondon, não se reduz ao fluxo dos fenômenos, ao fato de que toda coisa está em devir e muda permanentemente, que cada momento da realidade é a sequência e o efeito do momento precedente (como o quereriam certos comentadores, que inquieta a dimensão ontológica deste pensamento): ela está a todo momento vinda ao ser determinado e individuado em proveniência do ser indeterminado e pré-individual de que o ser individuado permanece carregado. A “realidade pré-individual”, a “fase do ser pré-individuado”, estas expressões não correspondem a uma noção à qual se referiria para dar conta, de uma vez por todas, da primeira vinda ao ser de um ser (como um nascimento), que, em seguida, não teria senão que prosseguir seu devir genético e suas metamorfoses incessantes, das quais o conhecimento objetivo e histórico daria conta adequadamente. O conhecimento da gênese empírica que a ciência proporciona não constitui um conhecimento nem daquilo que é pré-individual nem da individuação; só a apreensão reflexiva do processo de individuação do pensamento do sujeito conhecedor, que não exclui o conhecimento objetivo, pois o re-efetua e o reflete, mas não se confunde com ele, permite apreender (não conhecer, estritamente) a individuação. Reportar-se-á ao artigo Conhecimento da individuação e individuação do conhecimento: a individuação não é uma propriedade objetiva dos seres individuados e não é o objeto de um conhecimento possível. “A individuação do real exterior ao sujeito é apreendida pelo sujeito graças à individuação analógica do conhecimento no sujeito” (ILFI, 56).
