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Rosen (1993) – Hipótese de Sócrates

ROSEN, Stanley. The Question of Being: A Reversal of Heidegger. New Haven: Yale University Press, 1993.

  • A fundamentação existencial e ética da hipótese das Ideias no diálogo Fédon

A escolha do Fédon como ponto de partida para a abordagem direta das Ideias platônicas, em detrimento de passagens aparentemente mais técnicas da República, do Sofista ou do Filebo, justifica-se pelo fato de que é nesta obra que Sócrates elucida a conexão intrínseca entre a hipótese das Ideias e a concepção fundamental da filosofia como um modo de vida, revelando que a motivação primária para o retorno às Ideias não é a ontologia pura, mas a necessidade premente de harmonizar a theoria com a intenção prática de agir para o melhor.

  • A validação da racionalidade da investigação científica dos entes exige um sentido de racionalidade que abarque a totalidade da vida e permita o contraste qualitativo entre diferentes modos de existência, algo que a física e a ontologia, por si sós, são incapazes de fornecer, visto que a intenção de agir em prol do melhor constitui uma característica fundamental da vida pré-teórica ou cotidiana; consequentemente, iniciar a investigação por análises ontológicas da estrutura da inteligibilidade impediria o acesso à existência humana tal como é efetivamente vivida, ao passo que partir da expressão cotidiana da intencionalidade humana — direcionada à felicidade e ao melhor — conduz inevitavelmente à hipótese das Ideias, preservando assim a integridade da vida humana.
  • Sócrates mimetiza essa totalidade narrativa ao relatar o curso de sua vida filosófica no limiar do cotidiano, especificamente dentro de uma cela de prisão durante suas horas derradeiras, um local político que é simultaneamente destacado da cidade, onde os prisioneiros, banidos da vida política, são executados em conformidade com o nomos, ilustrando como a cidade que possibilitou a geração de Sócrates e da compreensão socrática da filosofia prepara-se agora para impor sua destruição, conectando os temas cosmológicos de presença e ausência com a existência humana e evidenciando a incompatibilidade paradoxal entre a melhor vida humana e a associação política que a torna possível.
  • A natureza não-técnica da preparação filosófica e a função das Ideias

A transcendência da doxa (opinião) é realizada por Sócrates a partir de dentro da própria condição de prisioneiro, num processo onde a morte, para a qual toda a sua vida filosófica serviu de preparação, é testemunhada na partida gradual da vida de seus membros, refletindo uma preparação que não é técnica no sentido de possuir uma estrutura formal de aspectos eidéticos, mas sim técnica no sentido grego autêntico, conforme apontado por Heidegger, de estar em casa dentro do todo.

  • A afirmação explícita de Sócrates de que suas considerações sobre as Ideias no Fédon não diferem do que foi dito anteriormente refere-se ao ato de colocar ou postular o belo considerado em si mesmo (auto kath hauto) e outros casos semelhantes, indicando que, embora tais Ideias sejam frequentemente mencionadas nos diálogos, não há um relato uniforme de sua natureza, sendo o elemento comum às diversas discussões não uma análise ontológica rigorosa, mas o reconhecimento de sua função indispensável na economia de uma existência racional.
  • A variedade de exposições sobre a natureza das Ideias, frequentemente mais poéticas e míticas do que analíticas, sugere que Sócrates e Platão não possuíam uma concepção plenamente elaborada das Ideias como entidades separadas, o que não diminui a convicção de que elas constituem a hipótese mais forte ou mais firme, na medida em que explicam a presença de unidades identificáveis ou entes de um aspecto definido dentro do fluxo da gênese, embora o reconhecimento de que um ente possui tal aspecto não equivalha à compreensão do que é ser um aspecto, permanecendo inconclusiva a evidência dos diálogos sobre o sentido existencial do auto kath hauto.
  • A etimologia de aitia e a crítica à predicação categorial

A busca socrática pela aitia (causa) da geração e destruição, termo que literalmente denota responsabilidade ou culpa e, portanto, uma acusação, revela uma conexão profunda com o verbo kategorein (acusar), do qual deriva a palavra categoria; tal verbo, composto por kata (contra) e agoreuein (falar na praça pública ou agora), significa fazer uma acusação de responsabilidade publicamente visível, uma etimologia citada por Heidegger para demonstrar a conexão interna entre a presença e o papel das categorias na definição do ser enquanto ser aristotélico.

  • Embora Heidegger associe a kategoria à Ideia platônica e ao hypokeimenon aristotélico, deve-se notar que não há categorias em Platão, sendo Aristóteles quem introduz o sentido técnico de categoria como uma tabela de propriedades definidoras atribuídas a um sujeito que as possui; contudo, a identificação do proprietário por suas propriedades, estritamente falando, não identifica o proprietário em si mesmo, pois a essência (ousia) que declara o que o proprietário é fundamentalmente não pode consistir apenas em itens de outras categorias, exigindo, em última análise, uma intuição pré-categorial e pré-discursiva.
  • A análise da definição de homem como animal racional demonstra que a concatenação de propriedades essenciais não explica a unidade viva do ser, pois a racionalidade não é adquirida por um animal pré-existente nem é externa a ele, e a coexistência de racional e animal permanece obscura sem uma compreensão antecedente do que significa estarem juntos (standing together), o que sugere que declarações predicativas e tabelas de categorias são úteis para analisar contas discursivas, mas incapazes de responder à questão fundamental sobre o que é um homem sem recorrer a uma percepção unitária prévia.
  • A distinção entre o eidos aristotélico e o eidos platônico

Para Platão, o eidos de homem não é a ousia tomada como animal racional, ou seja, como um modo de conjunção de propriedades, mas sim o aspecto (look) de homem que deve ser apreendido para que qualquer definição essencial seja enunciada; diferentemente de Aristóteles, para quem a apreensão do eidos ocorre como a atualização da unidade desse eidos no intelecto ativo — tornando o eidos presente tanto no pensamento quanto no indivíduo —, o eidos platônico é caracterizado por sua ausência ou separação do pensamento humano, impedindo uma apreensão completa ou uma análise discursiva adequada.

  • A visão da Ideia de homem não é a apreensão do homem como algo diferente (como animal racional), mas a visão precisa do homem enquanto tal, de modo que não se pode dizer que um homem parece com um homem, pois ele é um homem e exibe esse aspecto; as contas verbais dependem da rememoração prévia desse aspecto ou Ideia, e a busca pela aitia não é uma acusação predicativa (kategoria) que separa o sujeito de seu predicado, mas uma busca pela inteligibilidade que, paradoxalmente, desaparece no cumprimento de sua função de revelação, antecipando a doutrina heideggeriana do jogo entre presença e ausência.
  • A coragem socrática e a descontinuidade entre morphe e Ideia

A narrativa do Fédon possui uma ambiguidade dramática onde Sócrates, prestes a morrer, atua como a aitia da coragem de seus companheiros, levantando a questão de como reconhecemos a coragem em Sócrates sem conhecer a definição de coragem; os traços comportamentais perceptíveis, como a calma e o riso tranquilo, não são idênticos à coragem, pois poderiam ser exibidos por um covarde dissimulado ou por alguém em circunstâncias onde o perigo não é iminente, indicando que o conhecimento da Ideia de coragem não é o mesmo que o conhecimento de que Sócrates é corajoso.

  • Existe uma descontinuidade fundamental entre a morphe (forma perceptível) e a Ideia, pois embora a coragem produza respostas típicas em circunstâncias normais, circunstâncias anormais podem gerar respostas ambíguas ou fingidas, e a identificação do anormal pressupõe o conhecimento prévio da norma ou medida, que é a Ideia; assim, a inferência sobre o estado da alma de Sócrates baseia-se não em dedução lógica, mas no conhecimento de nossa própria alma e na interpretação de traços comportamentais à luz de uma apreensão da Ideia que não é uma imagem visual.
  • O erro na identificação da coragem ocorre não em relação à Ideia de coragem, mas em relação à sua manifestação particular, pois um fantasma ou imagem falsa que se assemelha à coragem (como o covarde dissimulado) nos estimula a recolher a Ideia de coragem justamente porque distinguimos a Ideia da imagem falsa; a Ideia é a medida pela qual julgamos a precisão ou imprecisão da imagem, e sem a visão independente da Ideia, seríamos incapazes de distinguir entre a cópia e o original.
  • A problemática da imagem, o discurso e a natureza da hipótese metafísica

A distinção feita no Sofista entre eikon (imagem precisa) e fantasma (imagem acomodada à perspectiva humana) implica que uma imagem precisa não se pareceria com o original para nós, dada a nossa limitação de perspectiva, e que não somos capazes de perceber as Ideias como elas realmente são porque elas não são acomodadas à perspectiva humana; consequentemente, o olhar original mostra-se aos seres humanos não através de sua identidade com a imagem falsa, mas como distinto dela, exigindo que a imagem funcione como um lembrete e não como uma apresentação direta.

  • O discurso (logos) é essencialmente imagético e constitui uma cópia inexata das coisas, que por sua vez são cópias inexatas das Ideias, de modo que o pensamento discursivo não pode simplesmente chegar à verdade (aletheia) ou ao desvelamento completo, pois o logos oculta o que revela; a tentativa de escapar dessa indeterminação através da lógica pura ou da sintaxe leva apenas a uma visão da forma lógica que ocorre no silêncio (como em Wittgenstein) ou, quando analisada, à produção infinita de filosofias da lógica e falatório técnico.
  • Conclui-se que as Ideias de Platão não são tópicos de uma análise ontológica sistemática da estrutura do todo, mas uma hipótese necessária para explicar a ordem e a inteligibilidade da vida cotidiana, resultando em especulações mas não em relatos discursivos definitivos de sua natureza; a Ideia não é um original destacado no sentido de um modelo copiado cognitivamente pela imagem, mas é o próprio aspecto, num sentido conectado ao logos como recolhimento e não apenas como fala, cuja natureza se esclarece na compreensão da filosofia como um modo de vida harmonizado pela busca do melhor.
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