Rosen (2014) – A disputa entre filosofia e poesia
ROSEN, Stanley. The Quarrel Between Philosophy and Poetry: Studies in Ancient Thought. Londres: Taylor and Francis, 2014.
- A natureza paradoxal e eminentemente política da querela entre filosofia e poesia
A discussão suscitada por Sócrates no Livro X da Republica acerca da antiga desavença entre filosofia e poesia impõe ao leitor o confronto com um paradoxo fundamental: se Sócrates toma partido da filosofia, como reconciliar essa postura com o fato de que Platão, o criador do Sócrates dramático e autor dos diálogos, é ele próprio um poeta no sentido amplo de poiesis (produção)?
Esse problema, correlato à crítica da escrita no Phaedrus, sugere que a diferença entre filosofia e poesia não reside em convenções formais como métrica ou rima, mas em uma distinção de natureza que se manifesta através de duas acusações principais na Republica: uma ontológica (a poesia produz imagens falsas em vez de apreender originais) e outra político-moral (a poesia incentiva a licença do desejo e do Eros).
- A análise revela que essas acusações tornam-se ambíguas diante da própria estrutura da obra platônica, visto que a Republica é ela mesma um poema e uma imagem, onde Sócrates justifica o uso de “mentiras nobres” ou medicinais pelos guardiões; a expulsão da poesia hedônica visa impedir que o prazer e a dor governem a cidade em lugar do nomos (costume/convenção) e do logos considerado o melhor, indicando que o critério de exclusão é político e não puramente epistemológico, e que a poesia poderia ser readmitida se provasse ser benéfica e medicinal, ou seja, se se submetesse aos fins políticos da filosofia.
- A fenomenologia da tirania, o Eros desenfreado e a circularidade da virtude
A análise dos regimes políticos demonstra que a democracia, caracterizada pela busca insaciável de liberdade e pela eksousia (licença) de cada cidadão viver como lhe apraz, degenera inevitavelmente em tirania, regime no qual o Eros vive em completa anarquia e desordem, o que estabelece uma conexão intrínseca entre a poesia (que alimenta os desejos), a licença democrática e a loucura tirânica.
O contraste entre o filósofo e o tirano depende, portanto, da distinção entre filosofia e poesia; contudo, o argumento de que os guardiões filosóficos não são tiranos porque restringem seu Eros sexual através da apreensão de formas puras revela-se circular ou insuficiente, pois a superioridade da cidade sexualmente contida deriva ou de uma visão convencional de virtude ou da suposta superioridade da filosofia, a qual ainda carece de demonstração definitiva.
- A própria atividade política dos filósofos, que constroem a cidade “em logos” (te en logois keimene) como cópia de um paradigma celeste, é um ato saturado de mimese prático-produtiva, sugerindo que a distinção entre a tirania erótica e o governo filosófico reside menos na ontologia do que na orientação teleológica do desejo e na utilidade política da mimese empregada.
- A desconstrução da crítica ontológica à mimese e a teologia do Deus-Poeta
A crítica à mimese no Livro X, baseada na distância ontológica do poeta em relação à verdade (o poeta imita o artefato, que imita a Forma), é problematizada pela afirmação socrática de que o próprio deus é o produtor (phytourgon) da Forma única da cama, implicando que a “Ideia” é um artefato divino e que deus é um demiurgo ou poeta supremo.
Essa caracterização sugere que a distinção entre entes naturais e artefatos é irrelevante para a compreensão do “um sobre muitos”, e que as Ideias platônicas, descritas frequentemente através de metáforas poéticas como produzidas, podem ser invenções divinas, universalizando a estrutura da mimese desde a produção divina até a cópia artística.
- O perigo da poesia não reside em velar abstratamente as Ideias (que não são objeto da mimese poética tradicional), mas na representação incorreta do caráter moral e na fragmentação da dianoia dos cidadãos ao encorajar a imitação de múltiplos modos de vida; portanto, se o poeta ou o filósofo possuir o pharmakon (o remédio, ou seja, o conhecimento da natureza da mimese e sua utilidade), a censura é suspensa, e a mentira torna-se um instrumento legítimo e necessário de governo, colocando a filosofia, enquanto instrumento interno da cidade, em paridade funcional com a poesia.
- A epistemologia da Linha Dividida e o esoterismo político de Platão
A análise da dianoia (intelecto discursivo) na analogia da Linha Dividida revela que o pensamento discursivo opera inevitavelmente através de imagens e hipóteses, utilizando entes sensíveis como ícones de originais presumidos, o que implica que a dianoia é dependente de imagens e, portanto, incapaz de um discurso direto sobre as Formas em si mesmas, acessíveis apenas a uma noesis silenciosa.
Dada a inseparabilidade entre discurso e imagem, conclui-se que Platão pratica um esoterismo político: os diálogos não são tratados teóricos que expõem a ciência dialética pura (o que seria impossível discursivamente), mas retratos poéticos e retóricos da filosofia, adaptados (“medicinais”) às necessidades morais e políticas da cidade e dos interlocutores.
- A interpretação dos diálogos exige, portanto, reconhecer que os “argumentos” platônicos são construções dramáticas que espelham as pressuposições teóricas do leitor ou as intenções pedagógicas do autor, e que a própria apresentação da filosofia como uma ciência matemática ou dialética precisa é uma imagem poética destinada a persuadir sobre a superioridade da vida filosófica, ocultando a impossibilidade de uma ciência discursiva das Formas puras.
- A Diaeresis no Filebo e a insuficiência da precisão matemática para a vida boa
A divisão das ciências (episteme) no Filebo demonstra que, embora a aritmética pura possua a máxima precisão e pureza, ela não constitui o elemento governante da vida boa humana, que é essencialmente uma mistura “impura” e demiúrgica de inteligência e prazer; a tentativa de elevar a matemática a paradigma da filosofia falha porque a precisão formal não garante a utilidade política ou moral necessária para a construção da vida boa.
A vida boa é causada por um “quarto gênero” (o Intelecto Divino ou a causa da mistura), e a sabedoria humana (phronesis) atua como o demiurgo que produz essa mistura vital; as artes menos precisas (como medicina, música, política) devem governar as mais precisas (matemática) em função do bem humano, pois a medida (metron) relevante para a vida não é aritmética, mas prudencial e política (kairion - o oportuno).
- A variação terminológica e a confusão na classificação das artes no Filebo são ilustrações dramáticas da inadequação da pureza e precisão como paradigmas para a sabedoria humana; compreender a vida humana é vivê-la e construí-la (produzi-la), e a filosofia, para ser eficaz, não pode se isolar na aritmética pura, mas deve integrar a mimese e se tornar uma poesia filosófica que ordena os desejos.
- A sublação dialética na Poesia Filosófica e a primazia do dualismo
A querela entre filosofia e poesia é, em última análise, sublada (sublated) em um discurso demiúrgico superior: a poesia filosófica, onde a filosofia sem poesia seria imoderada e a poesia sem filosofia seria cega; o reconhecimento de que a poesia triunfa politicamente na cidade (através dos mitos e da educação) é reconciliado com a filosofia através do uso consciente da mimese para fins de justiça.
O filósofo, ao fundar a cidade ou ordenar a própria alma, atua como um poeta que utiliza a “mentira nobre” (pharmakon) para inocular os cidadãos contra as consequências debilitantes do reconhecimento de que a justiça perfeita é impossível; a Republica encerra-se não com uma demonstração matemática, mas com o Mito de Er, reafirmando que a função pedagógica da filosofia depende do mito.
- A rejeição do narcisismo erótico (o desejo de recriar o mundo à própria imagem) é alcançada pela orientação para as Ideias, que não refletem imagens de quem as contempla, mas terminam a reflexividade; contudo, o discurso sobre as Ideias permanece imagético (rememoração), e a conclusão final aponta para o dualismo entre o Uno e a Díade indefinida como a estrutura soberana da realidade, onde a síntese triádica é apenas uma forma eloquente do silêncio da unidade.
