Rosen (1993) – Ideias platônicas
ROSEN, Stanley. The Question of Being: A Reversal of Heidegger. New Haven: Yale University Press, 1993.
- A evolução da hermenêutica heideggeriana acerca do platonismo e a centralidade da Doutrina das Ideias
O conceito de platonismo na obra de Heidegger circunscreve-se primordialmente, e de modo quase exclusivo, à doutrina das Ideias, cuja análise se estende por um vasto período textual de aproximadamente cinquenta anos, denotando um deslocamento tangível entre as abordagens iniciais e as tardias, conforme observado por comentadores como Alain Boutot, que notam a transição de uma visão onde Platão e Kant figuravam como precursores para um distanciamento radical de toda a história da filosofia.
- Observa-se que, no período definido pela preparação de Ser e Tempo, o caráter a priori das Ideias era compreendido como intrinsecamente temporal, embora ainda não niilista, sendo que o desenvolvimento posterior dessa interpretação — associado ao estudo intensivo de Nietzsche nas décadas de 1930 e 1940 — fundamenta a tese central de que a leitura heideggeriana da doutrina platônica das Ideias estrutura-se sobre quatro pontos principais que evidenciam uma perspectiva aristotélica subjacente.
- O deslocamento ontológico da physis para a idea e a transmutação da verdade
Verifica-se na filosofia de Platão um deslocamento da compreensão grega originária do Ser enquanto physis — entendida como o processo de emergência pelo qual as coisas adentram a visibilidade — para o resplandecer do aspecto em si mesmo, ou seja, para aquilo que a vista oferece à observação, fixando-se na presença duradoura e na natureza da face como um olhar (eidos), de modo que o processo pelo qual o aspecto vem à luz é relegado ao plano de fundo, tal como ilustrado na alegoria da caverna na República.
- A aletheia, em seu sentido original de desvelamento ou não-ocultamento, passa a ser subordinada à dominância da Ideia, pois, embora os estágios de desocultamento sejam nomeados, eles são agora pensados a partir de como tornam acessível o que se mostra em seu aspecto e de como tornam visível essa automanifestação, resultando na mutação da noção de verdade, que deixa de ser desvelamento para se tornar a correção da medida ou o cálculo do aspecto acessível à cognição humana, estabelecendo a correspondência ou semelhança da descrição com o original como critério de veracidade.
- A metafísica da luz, a Ideia do Bem e a prefiguração da vontade de poder
A luminosidade que torna as Ideias visíveis transfigura-se na própria Ideia, especificamente na Ideia do Bem, representada pela imagem do sol, o que substitui o Ser enquanto processo de emergência pela expressão da acessibilidade do ente emergente ao entendimento humano e, consequentemente, pela servibilidade ou utilidade das coisas para a inteligência discursiva e calculativa.
- O Bem é definido como aquilo que torna o ente apto ou capaz (tauglich) de ser um ente, mostrando-se o Ser no caráter de possibilitar e condicionar, passo decisivo para toda a metafísica, porquanto a Ideia torna-se o protótipo para a noção moderna de dever (Sollen) ou o Ideal ao qual o ser aspira, prefigurando assim a doutrina nietzschiana do Ser como valor, onde ser significa ser visível ao intelecto calculador e, eventualmente, manipulável ou produzível em acordo com a vontade humana.
- A ambiguidade da produção artesanal e a desconstrução da ontologia platônica
Identifica-se uma duplicidade estrutural na discussão platônica das Ideias segundo a exegese heideggeriana, onde o nível subjacente da revelação original do Ser é encoberto pela nova doutrina da acessibilidade, a qual contém uma ambiguidade interna: Platão entende as Ideias como preordenações duradouras independentes de suas cópias no mundo da gênese, mas simultaneamente as concebe por analogia ao modelo do artífice ou demiourgos.
- As Ideias funcionam como plantas ou projetos (blueprints) que o artífice divino consulta para a construção de entes de aspectos correspondentes, o que intrinsecamente incorpora a noção do projeto como algo construído, um produto da imaginação, fazendo do artífice divino — contrariamente à intenção de Platão — o protótipo da concepção moderna do Ser como produto do processo cognitivo e inserindo na ontologia platônica o componente utilitário da produção técnica.
- Essa ambiguidade conduz a uma oscilação metodológica onde Heidegger alterna entre desconstruir a doutrina intencional através de etimologias originais e projetar desenvolvimentos posteriores da história da filosofia de volta no relato explícito de Platão, resultando em um amálgama indistinto de visões gregas originais e inovações consideradas desastrosas, tornando muitas vezes obscuro se a crítica se dirige à compreensão ortodoxa das Ideias ou se é uma leitura das próprias doutrinas de Heidegger na estrutura subterrânea dos textos platônicos.
- A análise fenomenológica de 1927: da percepção à produção
No seminário sobre os Problemas Fundamentais da Fenomenologia, ocorre a assimilação implícita da terminologia platônica à aristotélica ao listar os conceitos gregos subjacentes à essentia (como morphe, eidos, to ti en einai), argumentando-se que a Ideia, como aquilo que está diante de nós, é o protótipo da essência como aquilo que subjaz (hypokeimenon) às propriedades do ente percebido.
- Heidegger postula a inversão da relação fundamental grega entre eidos (aspecto) e morphe (forma/cunhagem) na ontologia platônica; enquanto na percepção ordinária apreende-se o aspecto através da configuração fenomenológica ou cunhagem do ente, na ontologia platônica a configuração particular é fundamentada no eidos prioritário e independente, operando-se uma transição de uma concepção perceptiva para uma concepção produtiva onde o eidos é o modelo antecipatório na mente do artífice.
- O protótipo da Ideia platônica configura-se como o padrão existente na mente do artífice, uma imagem da imaginação (fantasia) que antecipa o que se pretende produzir, insinuando a atividade da imaginação na ontologia e transformando a Ideia no protótipo da perspectiva nietzschiana, onde o que Platão toma como o aspecto do ente é, na verdade, como o ente parece à cognição humana.
- A crítica baseada na República (1936/37): a Ideia da cama e o Deus artífice
A análise contida nos volumes sobre Nietzsche concentra-se na discussão da Ideia da cama no livro 10 da República, negligenciando o contexto político e dramático da rivalidade entre filosofia e poesia, o que leva à ignorância do fato de que Sócrates introduz o exemplo dos artefatos para reduzir o status do poeta, e não para estabelecer uma ontologia dogmática da produção.
- Ao tratar as Ideias como possibilidades e não atualidades, Heidegger dissolve o vínculo regular nos diálogos entre o ente genuíno (ontos on) e o ente por natureza (physei), tratando os artefatos como se emergissem da mesma forma que os entes naturais, permitindo assim que a doutrina das Ideias seja lida como o protótipo da subjetividade moderna e do ego cogitans produtivo.
- A interpretação heideggeriana falha ao não reconhecer que a metáfora socrática do deus como criador da Ideia da cama sugere um phutourgos (jardineiro) e não um carpinteiro, implicando que a “produção” divina é um crescimento natural (physis); porém, Heidegger assimila crescimento a emergência e emergência a manufatura, obscurecendo a diferença ontológica entre o crescimento de uma flor (cujo aspecto é intrínseco) e a fabricação de uma cama (cujo aspecto é mediado externamente).
- A homogeneidade dos aspectos e a questão da mimese
Argumenta-se, a partir do exemplo do espelho e da pintura, que a poiesis não é necessariamente manufatura, mas um “colocar diante” (Bei-stellen), concluindo-se erroneamente que o mesmo aspecto ou look se manifesta de três maneiras diferentes — na Ideia, no objeto manufaturado e na imagem refletida — diferenciando-se apenas pelo modo (tropos) de apresentação e pelo grau de obstrução.
- A tese da identidade do aspecto nos três níveis revela-se insustentável, pois se a Ideia da cama existe na natureza (jardim divino), o carpinteiro e o pintor produzem cópias que não contêm o aspecto natural da mesma forma; a “obscuridade” (amudron) da cama fabricada em relação à verdade significa que ela é menos verdadeira, e não que ela contém uma manifestação obscura da própria Ideia, visto que não há identidade ontológica entre a emergência natural e a produção técnica ou a reflexão mimética.
- A insistência heideggeriana na unicidade do aspecto visa fundamentar a tese de que o Ser em Platão é, em última análise, a fixação de um produzir, onde a singularidade da Ideia deriva da vontade divina de ser o criador genuíno, fundindo physis, techne e poiesis sob o conceito geral de “trazer à luz” (Hervorbringer), ignorando as distinções explícitas de Sócrates entre o cultivo divino, a fabricação humana e a imitação artística.
- O conceito “médio” de Ser e a continuidade metafísica
Paralelamente à interpretação produtivista, sustenta-se que a doutrina platônica institui um conceito médio ou genérico de Ser, esvaziado de conteúdo para ser aplicado a todas as regiões do ente, antecipando a universalidade analógica do Ser em relação às categorias em Aristóteles.
- A atribuição de um conceito médio de Ser a Platão é contestada pela evidência de que as Ideias não são categorias aristotélicas vazias, mas formas específicas, e não há em Platão uma doutrina unificada ou ontologia do “ser enquanto ser”; a tentativa de Heidegger de assimilar a comunidade da Ideia com suas instâncias à unidade analógica aristotélica visa forçar uma continuidade na história da metafísica onde o aristotelismo é apenas o desenvolvimento do platonismo.
- A evolução apontada por Heidegger, onde a physis torna-se Ideia/paradigma, a verdade torna-se correção e o logos torna-se a origem das categorias, depende da reificação do Ser como um aspecto determinado e, simultaneamente, de sua generalização vazia, duas posições logicamente incompatíveis, a menos que se aceite a premissa heideggeriana de que a metafísica é, desde o início, o esquecimento da diferença ontológica em favor da acessibilidade do ente à manipulação humana.
