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Michel Henry (Marx) – a crítica da religião

Henry, Michel. Marx. vol. I. Una filosofía de la realidad. - 1a ed. - Buenos Aires : Ediciones La Cebra, 2011.

A formulação célebre da crítica da religião na Introdução da Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, ao afirmar liminarmente que para a Alemanha a crítica da religião está no essencial acabada, indica que tal crítica não pertence propriamente ao pensamento original de Karl Marx, mas inscreve-se na unidade do campo ideológico alemão, sendo tomada de Ludwig Feuerbach e sobredeterminada pelo idealismo de Bruno Bauer; essa filiação revela-se no fato de que tanto o materialismo de Feuerbach quanto o idealismo de Bauer obedecem a um mesmo esquema de análise, o esquema da consciência, onde a religião é interpretada como uma concepção ou um produto da consciência, uma representação posta pelo sujeito que, embora exteriorizada como essência estranha, permanece subordinada à sua origem produtora, tal como Marx já admitira no prefácio de sua tese doutoral ao adotar a profissão de fé de Prometeu e recusar qualquer divindade que não a consciência de si humana.

A ruptura explícita com Bauer, que ocorrerá em A Sagrada Família, deriva da tomada de consciência por parte de Marx do caráter teológico e idealista da crítica baueriana, a qual combate a consciência religiosa como uma essência autônoma e encerra o problema no sistema fechado da consciência, reduzindo a emancipação do mundo à capacidade abstrata de criticar a religião enquanto religião; ao tratar a questão como um simples retorno da consciência religiosa sobre si mesma, Bauer falha em explicar a gênese da alienação, deixando sem resposta a questão fundamental de por que os princípios da consciência de si foram suplantados por suas próprias consequências representativas, uma aporia que a resposta alemã clássica — a consciência tornou-se exterior a si mesma — apenas repete tautologicamente sem resolver, mantendo o pressuposto idealista de que a religião se identifica com a representação.

A persistência do pressuposto idealista no texto de 1844 manifesta-se no antropocentrismo que rege a crítica, herdeiro da autonomia da consciência postulada por Immanuel Kant e Johann Gottlieb Fichte, onde a consciência constitui a lei de sua ação e a medida de todas as coisas; essa centralidade é reafirmada na tese de que o homem faz a religião e de que a crítica deve fazer com que o homem gire em torno de si mesmo como seu verdadeiro sol, operando a substituição da terminologia da “consciência” pela do “homem” sob a influência direta da antropologia de Feuerbach, que reduz a teologia à antropologia não apenas ao afirmar a origem humana das representações religiosas, mas ao identificar os predicados do ser divino — inteligência, amor, sensibilidade — com os predicados da essência humana, de modo que o mistério do Deus que sofre se revela como o mistério da sensibilidade do coração humano.

A tese do radicalismo, segundo a qual ser radical é tomar as coisas pela raiz e a raiz para o homem é o homem mesmo, perde sua aparente eficácia materialista quando se constata que o conceito de homem em Feuerbach e no jovem Marx não designa o indivíduo vivente e concreto, mas a essência genérica (Gattungswesen); a verdadeira autonomia do indivíduo é posteriormente refutada por Marx nos Grundrisse e em A Ideologia Alemã, nomeadamente na polêmica contra Max Stirner, ao demonstrar que o indivíduo não se põe a si mesmo num ato de autocriação absoluta, mas encontra sua existência e suas condições de produção — a natureza e o próprio corpo — como dados prévios, o que implica uma passividade ontológica original onde o indivíduo é suposto antes de se pôr, uma passividade que constitui justamente o texto real da religião ignorado pela crítica antropológica.

A distinção fundamental de Feuerbach entre o gênero (infinito) e o indivíduo (finito) visa desmascarar a ilusão religiosa que consiste em opor o divino ao humano, quando a verdadeira oposição reside entre a essência humana e o indivíduo; contudo, essa distinção revela a fragilidade teórica de Feuerbach, que acusa o cristianismo de ter confundido o gênero com o indivíduo ao concentrar a totalidade dos predicados humanos na figura singular de Cristo, o que transformaria predicados essenciais como o amor em atributos arbitrários de uma personalidade subjetiva, degradando a necessidade da essência na arbitrariedade da graça; essa crítica, no entanto, recai sobre a própria concepção feuerbachiana, pois se o gênero é apenas a representação ideal de qualidades tomadas dos indivíduos reais, ele possui a mesma estrutura de irrealidade que o Deus da teologia, tornando a afirmação de que o homem é o fundamento do homem uma tautologia vazia se o gênero não passar de uma coleção de predicados abstratos.

A tentativa de Feuerbach de conferir realidade ao conceito de gênero oscila entre um empirismo grosseiro, que o substitui pela soma aritmética dos indivíduos existentes e passados — o que falha em fundar uma autonomia essencial dada a finitude e mortalidade destes — e um retorno ao idealismo ontológico hegeliano, onde o gênero é compreendido como um universal real que, tal como a cor em relação às cores particulares, possui a onipresença e a infinitude que o indivíduo exclui; para substanciar esse infinito real, Feuerbach recorre à sexualidade e à relação Eu-Tu, onde a união do homem e da mulher completaria o gênero, mas essa manobra culmina numa apologia do paganismo antigo em detrimento do cristianismo, louvando a subordinação do indivíduo à totalidade da comunidade (Gemeinwesen) e revelando que a antropologia ateia nada mais é do que a última expressão do idealismo alemão que prioriza o universal sobre o particular.

A dependência da antropologia de Feuerbach em relação à ontologia hegeliana torna-se patente na definição da consciência como a relação do ser com o seu próprio gênero, ou seja, com a sua essencialidade universal, distinguindo o homem do animal pela capacidade de ter o infinito como objeto; essa consciência do infinito, contudo, é desmascarada pelo próprio Feuerbach como sendo apenas a consciência da infinitude da própria consciência, o que o leva a concluir que a consciência de Deus é a consciência de si do homem; todavia, essa inversão é puramente nominal, pois se o homem de Feuerbach não é o indivíduo mas o universal genérico, a consciência de si do homem não difere estruturalmente da consciência de si de Deus na especulação hegeliana — o devir para si da substância universal —, de modo que a crítica da religião como objetificação falha porque a essência do homem em Feuerbach é a própria consciência, e a estrutura da consciência é, por definição, objetificação e exteriorização.

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