Vida de Sócrates, maior mito de Platão
(Monticelli1997:217-218)
Que a vida de Sócrates — ou seja, o maior mito de Platão ] — esteja totalmente sob o signo de Apolo, é inegável: desde o estranho e certamente novo sentido que o lema de Delfos assume nessa vida, até a presença do deus no momento mesmo da morte, que ocorre com o retorno do navio ritual vindo de Delos (nesse dia, conta Fédon, termina a suspensão concedida a Sócrates segundo o costume ateniense de adiar toda execução durante os dias da missão à ilha-santuário do deus). Quem não se lembra das palavras de Sócrates na Apologia, sobre sua própria vida passada a serviço do deus, mostrando aos homens o quanto ignoram a si mesmos e quão vasta é sua ignorância; ou ainda da última homenagem de Sócrates ao deus que mata e que cura: “Devemos um galo a Asclépio, Críton. Pague-o e não se esqueça”? Entre os fogos de artifício verbais do Crátilo, aquele dedicado ao nome de Apolo supera os outros pela riqueza e virtuosidade alegre. Depois de associar o Hades ao invisível (aeides) e, em seguida, vinculá-lo a um tipo “nobre” de conhecimento (eidenai), Platão parece remeter às “potências” de um único deus as raízes desse conhecimento invisível. Três dos quatro tipos de mania distinguidos no Fedro e atribuídos à influência de diferentes deuses parecem ser reconduzidos a um original. O deus é “simples” (hapros) e “sempre radiante” (aeiballori); ele “atira de longe”; o terror sagrado que seu nome suscita alude ao seu poder, comum à arte mantíca e à medicina, de “libertar” e “purificar” — como a prática da filosofia é um exercício de morte ou catarse segundo o Fédon. Como deus “musical”, Apolo é “aquele que harmoniza e acompanha” — o movimento das estrelas, o coro das Musas — e o nome destas evoca o “buscar” (môsthai) e a busca filosófica (zeteôsis, de onde vem a zetoumene, a “ciência buscada”, “desejada” por todos os Predecessores, segundo a célebre expressão de Aristóteles).
