Apolo, memória e anamnesis
(Monticelli1997:216-220)
Talvez, ao seguir nosso fio, consigamos ao menos reencontrar algum aspecto do tipo de investigação que Platão inventou e que tem algo em comum com o exercício de uma memória essencial, que é próprio do discípulo das Musas, filhas da Memória. O próprio Platão diz isso em vários lugares, no Mênon, por exemplo, no Fédon e no Fedro ]. Assim, os poetas “em seu estado de êxtase veem muitas coisas, mas não compreendem o que veem”.
Isso significa que a anamnesis do poeta é uma anamnesis inconsciente ou irrefletida, enquanto a do filósofo é uma espécie de anamnesis refletida, lúcida e consciente. Se pensarmos que a “doutrina” platônica da anamnesis é, no fundo, a primeira formulação da ideia de um conhecimento a priori, não se pode deixar de notar a radical modificação do próprio modelo de conhecimento que Platão tentará definir por meio da teoria das Ideias, e que já havia ocorrido desde Aristóteles — para não falar dos paradigmas de conhecimento a priori que a época moderna proporia a partir de Descartes, até as “duas fontes do conhecimento” de Kant. De uma dessas fontes, quanto foi perdido pelo caminho. Mas o da “fonte” do conhecimento “essencial” — e do logos que o expressa — é um dos temas aos quais o fio que tomamos a partir dessa preposição, ek, nos conduz: e devemos seguir este fio ainda por algum tempo com paciência antes de enfrentar o nó intrincado desse tema.
No entanto, somos constantemente reconduzidos a isso por diversos caminhos.
Talvez seja em virtude dessa caracterização da busca filosófica de uma memória essencial que Sócrates pode afirmar, no Fédon, que a filosofia é “a maior música”. Assim, o próprio filósofo, enquanto aguarda sua morte na prisão de Atenas, compõe música para se tranquilizar. Ele diz, sorrindo, que deseja assegurar-se de que não interpretou mal o sonho recorrente que o incita a fazer isso. Talvez não seja, como Sócrates acreditava, um simples incentivo a perseverar na prática da filosofia, justamente a maior música: e para não errar, o filósofo — que não sabe criar mitos, mas apenas discursos — transforma em versos as fábulas de Esopo. Mas, acima de tudo, compõe um hino a Apolo, o deus sob cujo signo transcorre toda a vida (e também a morte) do Sócrates platônico, e sob cuja autoridade é erguida a Academia.
Mas o que significa isso, que a filosofia poderia parecer a Platão “a maior música”, a forma mais elevada de música? Talvez não devêssemos negligenciar tanto quanto geralmente se faz hoje o sentido vivo que uma afirmação como essa pode ter. O especialista, o erudito, talvez sejam capazes de reconstruir, a partir das alusões espalhadas no corpus platônico e dos testemunhos de Aristóteles, a componente “pitagórica” do pensamento de Platão, com a cosmologia numerossófica associada e a teoria das relações harmônicas conectada a ela. Eles nos recordarão o fuso do mundo que gira dentro da Necessidade com suas lançadeiras, em cada uma das quais gira uma sereia musical, emitindo uma nota de modo que todas se harmonizem em uma única harmonia ]; explicarão que o fuso com suas lançadeiras é uma construção fabulosa de uma construção matemática do universo e ainda recordarão que a astronomia, como entendida por Platão, é, em sua teoria da educação, contígua à música — pois ambas preparam para a dialética, e ambas, em sua “verdade”, não tratam de fenômenos sensíveis, como os movimentos das constelações e os acordes dos sons, mas da consonância inteligível das relações puramente numéricas que lhes servem de base ]. Eles nos remeterão ao Timeu, à visão da harmonia das esferas cósmicas.
Contudo, o leitor com interesses mais teóricos do que históricos, especialmente se acostumado ao exercício da análise crítica e da refutação, ao deparar-se com o Sócrates “musical” do Fédon, estará geralmente mais inclinado a dar de ombros e partir em busca de “argumentos” e teses: a Teoria das Ideias em sua forma clássica, as Provas da Imortalidade da Alma, etc. Agora, não há dúvida de que a busca que Platão chama de filosófica persegue um tipo de conhecimento, mas o problema que habitualmente nem sequer abordamos é saber que tipo, que modelo de conhecimento Platão praticou e tentou definir. Assim, frequentemente ficamos perplexos com esse estilo, diante do qual até mesmo o grande ilusionismo de Górgias parece insignificante, por esse mágico da palavra que raciocina e encanta, medita e divaga contando fábulas. “Música”, para nós, caçadores de argumentos, historicamente ingênuos que gostamos de personificar, equivale tanto a “sentimento da vida” ou uma nostalgia sentimental semelhante, a ser deixada para filósofos de segunda linha, ou na melhor das hipóteses, a um pouco de retórica sobre o significado “profundo” da especulação metafísica, embora temperada, no caso de Platão, pela ironia implícita que em todo lugar opõe o filósofo e sua consciência lúcida (mesmo quando inspirada) ao poeta extático e inconsciente.
Certamente, não é por essa concessão superficial às necessidades da alma que a palavra poderia sugerir-nos um modo vivo de ler Platão, e muito menos para um culto romântico da sabedoria superior dos poetas: atitudes que, ao menos no nosso século, andam de mãos dadas, como o erudito sóbrio não despreza uma esposa adornada com todas as graças de uma sensibilidade artística superior, como o homem da exatidão sorri indulgente e encantado pelos impulsos da alma, ou como, digamos, um Carnap e um Heidegger acabam concordando em reconhecer aos “poetas” um saber ao qual o pensamento racional fortemente ancorado nos limites da lógica e da ciência não pode nem deve aspirar.
Primeiramente, sendo antigos ou modernos, podemos sentir diante das distinções convencionais entre os gêneros literários o mesmo desconforto que Platão parece manifestar diante da restrição do termo poiétès àqueles que escrevem em versos com ritmo, quando poiésis ainda tinha o sentido de um “fazer” por meio do qual o que não existia vem a ser ]. Mas, à parte isso, o problema levantado pelo uso platônico da palavra “música” certamente não é o de estabelecer ou revisar as fronteiras entre o conhecimento filosófico e as outras atividades do espírito. Novamente, trata-se de compreender melhor o que se pode realmente entender por “filosofia”, qual modelo de conhecimento se tem em mente quando se diz que o filósofo pratica a forma mais elevada de música.
Se por música, em última análise, entendermos o que o termo significa para nós hoje, observaríamos naturalmente que o pensamento musical não é um pensamento “objetivante”, e que, embora seja “pensamento” no sentido de uma composição sensata e ordenada de elementos em um conjunto — como as palavras de um discurso ou as cores de uma pintura, aliás —, ela, no entanto, não possui uma relação de “representação” com o “mundo”: ela não foi feita, por assim dizer, para apresentar à mente estados de coisas possíveis.
Esta primeira sugestão deve certamente ser rejeitada como simplista e grosseira: mas não valeria a pena seguir a direção para a qual ela aponta?
“Música” é naturalmente compreendida no sentido amplo de culto e dom das Musas, filhas da memória; mas mesmo ao entender o termo nesse sentido amplo, não se deve negligenciar o vínculo entre aquilo de que se “lembra” ou o que se “sabe” e a vida que se reconhece como sua própria vida, um vínculo que remete, em nosso fragmento do Hino a Apolo, por meio de ek, a uma origem comum. Pois, de outra forma, a doutrina platônica da anamnese permanece um mito, talvez belo, mas opaco. O que é a “vida anterior” de que o filósofo deve tentar se lembrar, afinal? De fato, dissemos que os filósofos posteriores não souberam muito bem o que fazer com esse mito. Esse “antes” metafórico permaneceu, certamente, ligado às Ideias, mas transformando-se em uma propriedade lógica ou epistemológica: as Ideias “precedem” os fatos, não são os sentidos que nos ensinam sobre elas. Contudo, algo esclarecedor foi perdido no caminho dessa maneira. Voltaremos em breve ao sentido possível dessa “vida anterior”: o que já queremos destacar agora é o vínculo entre o acesso às Ideias e o acesso àquilo que se “era” — antes de esquecer o destino que se havia “escolhido”. Eis o que esse vínculo esclarece: tal como somos, tal é a medida de verdade que nos é dado compreender, tal é a medida de sentido à qual nossa vida pode acessar. Talvez seja esse o ponto que a maioria dos filósofos posteriores negligenciou: o vínculo entre o próprio ser e o conhecimento essencial. Aquilo de que o filósofo tenta se lembrar, afinal, é isso: quem ele era? O que era, para ele, existir? No estudo anterior, tentamos situar, em um quadro fenomenológico, essa componente “vocacional” e existencial da reflexão filosófica.
