monticelli:a-nocao-platonica-de-participacao

A noção platônica de "participação"

(Monticelli1997:221)

É possível que devamos prestar mais atenção do que o habitual ao fato de que a noção platônica de participação contém todos os sentidos que encontramos ao seguir o fio desse “graças a”, dessa preposição, ek. E esses diferentes sentidos certamente ainda não a esgotam. Uma ontologia platônica repousa sobre essa noção. Mas é possível aproximar-se deste coração do platonismo sem reviver, mesmo que de forma parcial e inadequada, o estilo de experiência intelectual que Platão chama de filosofia, e que nos parece tão diferente daquela que leva o mesmo nome em Aristóteles?

Retomando o fio de nossa análise e o vocabulário da teoria da participação, a pergunta a ser feita seria esta: qual tipo de conhecimento deve ser aquele que possui uma “causa” em comum com a existência? Em outras palavras: ainda há espaço para uma reflexão sobre a origem de uma palavra “persuasiva” e não “retórica”, uma palavra que tenha a mesma razão de ser daquele que a enuncia? Entender isso pareceria essencial para uma compreensão da teoria das ideias — ou pelo menos para uma reflexão sobre ela — mais livre ou menos comprometida com a tradição interpretativa que se enraíza na leitura aristotélica de Platão. E talvez isso também nos ajudasse a fazer vibrar uma corda vital (hoje quase sepultada sob o peso de nossa erudição) de um tipo de pensamento “ontológico” que faz uso essencial da noção de participação, e que, por essa razão, é considerado “arcaico” do ponto de vista aristotélico (é justamente o termo usado por Aristóteles). Um julgamento que se estende à tradição neoplatônica: aos nossos olhos, habitualmente já suficientemente comprometida pelo fato de se apresentar, ao menos em sua versão cristã, como “pensamento piedoso”, como uma fé que busca compreender a si mesma… Mas precisamos de uma arqueologia religiosa que nos forneça os conteúdos de uma fé que, em geral, já não possuímos, para acessar um pensamento como o de Platão? Ou melhor (pois é disso que se trata), para compreender uma das direções possíveis de nosso pensamento, aquela que Platão explora? O Platão ao qual podemos sentir necessidade de retornar é, antes de tudo, aquele que utiliza mitos com a mesma liberdade interior de um dramaturgo antigo ou moderno, mas que o faz para ilustrar um pensamento voltado a compreender a vida da inteligência, em vez de explicar o verdadeiro estado das coisas na natureza, a realidade do que existe. E isso independentemente do fato de que, para o Platão histórico, os dois objetivos acabam, com dificuldade, casando-se. Mas com esse casamento, cujo fruto será a edificação de um outro mundo, o pensamento filosófico se despede de algo que lhe é intimamente próprio, para depois gradualmente esquecê-lo. Algo que ela mesma teve de conquistar, com Platão, pelo esforço doloroso de uma transformação da atitude habitual e natural do espírito. A saber: o esforço de trazer à reflexão outro plano que não o das “teorias da realidade” (teológicas e físicas, religiosas e soteriológicas), enfim, outro plano que não o de uma ciência e uma sabedoria positivas, com seu lado dogmático e seu lado niilista ou cético.

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