michel_henry:michel-henry-marx-divisao-do-trabalho

Michel Henry (Marx) – divisão do trabalho

Henry, Michel. Marx. vol. I. Una filosofía de la realidad. - 1a ed. - Buenos Aires : Ediciones La Cebra, 2011.

A crítica da divisão do trabalho não possui em Marx uma significação meramente ética ou psicológica, como se se tratasse apenas de deplorar os prejuízos causados ao desenvolvimento pessoal do indivíduo, mas reveste-se de uma importância ontológica radical, constituindo o elemento central da genealogia das classes sociais e o fundamento último de todas as determinações sociais (propriedade, troca, capital) que se originam na separação entre as atividades da vida subjetiva.

A origem essencial das classes sociais não é um dado histórico contingente, mas reside na divisão do trabalho, especificamente na separação primordial entre trabalho material e trabalho intelectual, que se cristaliza na oposição entre cidade e campo; essa divisão é a matriz de todas as diferenciações ulteriores, como a separação entre produção e comércio e a especialização interna da produção na manufatura e na indústria, de modo que as classes são condicionadas pela divisão do trabalho e as formas desta constituem as bases de organização de qualquer sociedade.

A autonomia e a objetividade das relações sociais, que aparecem ao indivíduo como potências estranhas e constritivas, têm a sua raiz na divisão do trabalho, que transforma as potências pessoais em potências objetivas; consequentemente, a supressão da alienação e das classes sociais, objetivo último do socialismo e do comunismo, exige necessariamente a abolição da divisão do trabalho e a reapropriação pelos indivíduos da totalidade das suas forças produtivas, subordinando novamente a si as potências que se haviam autonomizado.

A divisão do trabalho é também o fundamento da propriedade, na medida em que implica a repartição desigual, qualitativa e quantitativa, do trabalho e dos seus produtos; a história das formas de propriedade corresponde rigorosamente aos estágios de desenvolvimento da divisão do trabalho, de tal modo que suprimir a propriedade privada é indissociável de suprimir a divisão do trabalho, pois ambas são expressões da mesma realidade de cisão e apropriação excludente.

A natureza da divisão do trabalho não pode ser reduzida a uma lei eterna ou a uma categoria abstrata (como queria Pierre-Joseph Proudhon), mas deve ser compreendida na sua realidade histórica concreta, que é sempre a realidade da atividade dos indivíduos vivos; a crítica de Marx inverte a perspectiva proudhoniana ao não partir da divisão do trabalho como um princípio que teria “lados bons e maus” para o indivíduo, mas ao partir da realidade do indivíduo para mostrar que a divisão do trabalho é, em sua essência, uma determinação da subjetividade e não uma estrutura objetiva exterior.

A divisão manufatureira do trabalho ilustra exemplarmente o caráter subjetivo do fenômeno: diferentemente da divisão social do trabalho (que reparte a produção em ofícios distintos), a divisão manufatureira decompõe o próprio trabalho individual de um ofício em operações parciais executadas por indivíduos diferentes; essa divisão não tem significação objetiva (pois o processo de trabalho sempre se compõe de várias etapas), mas significa a fragmentação do sujeito trabalhador, que é transformado em um resorte automático de uma operação exclusiva, mutilando a sua vida ao impedir a atualização das suas múltiplas potencialidades.

A divisão subjetiva do trabalho é, rigorosamente, a divisão do indivíduo mesmo, um ataque à raiz da sua vida; fenomenologicamente, ela significa que a atualização de uma única potencialidade da vida (o gesto repetitivo) implica a não-realização e o sacrifício de todas as outras virtualidades que constituem a totalidade da subjetividade monádica; a positividade da atualização parcial é, portanto, dialeticamente idêntica à negatividade da mutilação do ser, que se vê reduzido a uma parcela de si mesmo.

A objetividade aparente das forças sociais e da maquinaria na indústria resulta de uma representação fundada na experiência subjetiva da privação: as potências intelectuais e sintéticas do trabalho, que deixam de ser exercidas pelo operário parcelar, projetam-se para fora dele e confrontam-no como propriedades do capital e da máquina; a máquina, contudo, não trabalha nem realiza a síntese do trabalho, sendo apenas uma reunião de instrumentos, de modo que a “objetividade” do processo produtivo é apenas a forma alienada sob a qual a subjetividade mutilada percebe a sua própria essência expropriada.

A crítica da divisão do trabalho em Marx pressupõe uma ontologia da subjetividade radical que recusa a primazia da totalidade orgânica sobre o indivíduo; ao contrário de Platão ou Hegel, para quem a especialização funcional é a condição da harmonia do Todo (Estado ou Cidade), Marx reivindica a totalidade para o indivíduo, exigindo que cada homem possa desenvolver integralmente as suas disposições (ser caçador, pescador, crítico) e recusando que a realização do gênero se faça através da dispersão das faculdades em indivíduos diferentes.

A “falta” ou necessidade (besoin) que motiva a crítica não é uma carência objetiva do sistema produtivo, mas uma experiência subjetiva de sofrimento e privação na imanência da vida; o “homem rico” do comunismo é aquele que tem necessidade de uma totalidade de manifestações de vida, aquele em quem a sua própria realização existe como necessidade interior, o que marca a ruptura definitiva com o conceito feuerbachiano de gênero (entendido como coleção de atributos dispersos na humanidade) e a sua substituição pela subjetividade individual como lugar da totalização concreta.

A análise histórica comparada confirma a natureza subjetiva da divisão do trabalho: na Antiguidade, a divisão do trabalho podia ser elogiada enquanto condição da perfeição qualitativa do produto e do produtor (valor de uso), mas tornava-se odiosa quando erigida em princípio objetivo de castas que submetia o homem à obra; no caso dos camponeses parcelares franceses, a ausência de divisão do trabalho significava empobrecimento e isolamento, o que demonstra que tanto a crítica quanto o elogio da divisão do trabalho remetem, em última instância, ao grau de desenvolvimento e riqueza da vida subjetiva individual.

A evolução da divisão do trabalho na grande indústria moderna, com a introdução da automação, tende a suprimir a especialização do ofício (idiotismo do ofício) e a substituí-la por um trabalho de pura vigilância e regulação, acessível a qualquer um; essa desqualificação universal do trabalho, embora aumente a concorrência e a precariedade, confirma a tese de que a essência do trabalho reside na subjetividade viva e não na particularidade técnica da operação, apontando para uma problemática fundamental da subjetividade como fundamento da realidade econômica.

A redução das totalidades sociais (sociedade, classe, capital) à realidade dos indivíduos vivos e de suas atividades recíprocas não é um nominalismo abstrato, mas a consequência necessária de uma fenomenologia da vida que descobre na imanência da práxis individual e da afetividade a fonte única de toda a realidade social e histórica; a teoria da divisão do trabalho é, assim, a demonstração de que a economia política é, no fundo, uma teoria da subjetividade alienada e fragmentada.

/home/mccastro/public_html/sofia/data/pages/michel_henry/michel-henry-marx-divisao-do-trabalho.txt · Last modified: by 127.0.0.1