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Michel Henry (Marx) – A teoria dos textos

Henry, Michel. Marx. vol. I. Una filosofía de la realidad. - 1a ed. - Buenos Aires : Ediciones La Cebra, 2011.

A constituição histórica do marxismo opera-se sob o signo de um paradoxo fundamental onde a influência universal de Marx é proporcional à incompreensão radical de seu pensamento, configurando-se o marxismo não como a continuação legítima, mas como o conjunto dos contrassensos consubstanciais que obscureceram a filosofia original em favor de postulados teóricos e práticos orientados exclusivamente para a ação política e a eficácia revolucionária imediata, substituindo o conteúdo de uma filosofia da vida por um resumo sumário a serviço da práxis partidária; essa divergência decisiva encontra sua gênese textual no prefácio à reedição alemã do Manifesto Comunista de 1883, onde Friedrich Engels, após a morte de Marx, reduz o pensamento diretor deste à tese de que a produção econômica e a organização social constituem necessariamente a base da história política e intelectual, e que toda a história, desde a dissolução da propriedade arcaica, resume-se à história da luta de classes, uma formulação que, embora canonizada, revela-se filosoficamente falaciosa por silenciar a origem ontológica das classes e hipostasiar a luta como ser da história, quando, para a filosofia de Marx, as classes não são princípios fundadores mas realidades fundadas que reenviam a um princípio naturante anterior cuja elucidação escapa aos textos meramente políticos.

Há uma distinção ontológica intransponível entre os textos políticos ou histórico-políticos de Marx — tais como O Manifesto do Partido Comunista, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, A Luta de Classes na França e A Guerra Civil na França — e os textos propriamente filosóficos, uma vez que os primeiros, dirigidos a um público amplo e redigidos sob a urgência da conjuntura, não contêm em si mesmos seu princípio de inteligibilidade nem expõem os conceitos fundadores da teoria, recorrendo frequentemente a uma retórica hegeliana e a conceitos de significação limitada que, filosoficamente, apenas possuem validade quando reenviados à teoria explícita formulada nos escritos fundamentais; a própria confissão de Marx em carta a Kugelmann, datada de 9 de novembro de 1866, atesta essa limitação intencional ao declarar que, na redação do programa para o Congresso de Genebra, restringiu-se deliberadamente aos pontos que permitiam um acordo imediato e estimulavam a organização dos trabalhadores, evidenciando que a analogia entre os escritos políticos e os textos de juventude, ou a tentativa de fundar o marxismo sobre a amálgama de uns e outros, repousa sobre a ilusão de um primado do universal, da dialética e da negação hegeliana que a filosofia madura de Marx visava justamente superar.

O divórcio entre o pensamento de Marx e o marxismo doutrinário foi precipitado pelo fato extraordinário de a doutrina ter-se cristalizado na completa ignorância da obra filosófica fundamental, visto que Plekhanov, Lenin, Stalin e outros teóricos do materialismo dialético não tiveram acesso aos Manuscritos de 1844 nem a A Ideologia Alemã, que permaneceram inéditos até 1932, época em que o dogma já se encontrava petrificado; agrava-se tal cenário pela constatação de que o próprio Engels, cossignatário de A Ideologia Alemã, permaneceu alheio ao conteúdo filosófico fulgurante dessa obra, substituindo, em seu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, a inversão radical do conceito de ser operada por Marx por um materialismo vulgar e exterior, de matriz setecentista, que reduz o problema fundamental da filosofia à relação gnoseológica entre pensamento e ser, uma simplificação grosseira posteriormente adotada por Lenin para classificar Marx como um materialista adepto de Feuerbach, ignorando que a ruptura de 1845 consistiu precisamente na rejeição simultânea do idealismo e do materialismo feuerbachiano em prol da instauração de uma nova dimensão de realidade.

A imensa lacuna filosófica no coração da doutrina marxista engendrou o absurdo teórico do materialismo dialético, uma construção híbrida que tenta sintetizar dois elementos — o materialismo e a dialética — que A Ideologia Alemã e as Teses sobre Feuerbach haviam excluído conjuntamente através da intuição da práxis; a tentativa de definir o materialismo de Marx como dialético para diferenciá-lo do materialismo precedente resulta numa aporia onde cada termo, minado secretamente pela crítica marxiana, reenvia ao outro sem sustentação, tornando a discussão sobre a compatibilidade entre materialismo e dialética — debatida por idealistas como Gentile e pela intelectualidade soviética — uma questão irrelevante para a compreensão de Marx, visto que a intelecção da práxis exige uma crítica radical da dialética hegeliana e que, na análise de O Capital, o materialismo revelar-se-á incompatível com as pressuposições ontológicas que fundam a teoria econômica, demonstrando que a exclusão desses conceitos possui a força de uma exclusão temática e não apenas terminológica.

A ausência dos textos filosóficos fomentou a crença equivocada de que Marx teria anunciado o fim da filosofia em benefício da ciência positiva, interpretando precipitadamente a XI Tese sobre Feuerbach como um licenciamento do pensamento em favor da ação política, da economia e da sociologia, tese sustentada por autores como Herbert Marcuse, que vê na transição de Hegel para Marx a passagem para uma ordem de verdade não filosófica, e Ernest Mandel, que reduz o pensamento de Marx a uma constatação prática da miséria operária e a um apelo revolucionário expurgado de escorias filosóficas; essa leitura positivista é tributária da influência de Engels, cujos interesses intelectuais gravitavam em torno da química, da física e das ciências naturais, levando-o a comparar a teoria da história de Marx às descobertas de Charles Darwin e a introduzir digressões nos prefácios de O Capital, sugerindo que o saber inaugurado por Marx seria uma ciência entre as outras, comparável à biologia, o que constitui a negação da especificidade do saber filosófico como teoria dos fundamentos.

A degenerescência positivista do marxismo consuma-se quando este passa a ser interpretado não apenas por analogia com as ciências naturais, mas como uma sociologia científica das formas sociais e econômicas, tal como percebido por Émile Durkheim ao resenhar Antonio Labriola, onde o marxismo é louvado por explicar a vida social por causas profundas e inconscientes situadas no agrupamento dos indivíduos; essa redução transforma O Capital num simples tratado de economia política e perde de vista que a obra de Marx, enquanto filosofia, constitui uma teoria do fundamento transcendental da economia e da história, e não uma disciplina factual sujeita à superação pelo progresso científico, revelando que a definição dos conceitos marxistas como categorias exclusivamente sociais e econômicas implica a perda do próprio pensamento de Marx e a sua dissolução num cientificismo que lhe é alheio.

A publicação tardia de A Ideologia Alemã em 1932 revelou a cegueira ideológica do marxismo constituído, exemplificada na figura de David Riazanov, que, embora tenha descoberto o manuscrito e percebido sua importância como elo perdido na evolução intelectual de Marx, foi incapaz de compreender seu conteúdo, projetando sobre o texto o resumo simplista de Engels e concluindo que ali Marx abandonara a filosofia em favor da dialética formal e das ciências positivas; essa incapacidade de leitura repete-se em Lucien Goldmann, que considera a extensa polêmica contra Max Stirner — parte crucial da obra onde se define o indivíduo real contra o conceito ideológico de indivíduo — como um texto fastidioso, desproporcionado e sem interesse teórico atual, demonstrando como o véu ideológico do marxismo tende a minimizar ou desqualificar os textos onde a fundamentação ontológica da realidade é explicitada, preferindo a comodidade dos dogmas já estabelecidos.

O projeto teórico de Louis Althusser representa a tentativa deliberada de eliminar o pensamento filosófico de Marx sob o pretexto de uma leitura sintomal, operando um corte epistemológico arbitrário que relega os escritos filosóficos à categoria de obras de juventude ideológicas, produtos de um jovem burguês alemão cuja evolução só poderia ser iluminada pela aplicação retroativa dos princípios do materialismo histórico; essa metodologia institui uma cisão radical onde a consciência que o próprio Marx tinha de seu desenvolvimento intelectual é descartada como ilusória em favor de uma teoria marxista exterior que julga o texto, chegando ao paroxismo de afirmar que a condição prévia para a inteligibilidade de Marx é a aplicação da filosofia marxista ao próprio Marx, numa circularidade que culmina na prescrição de voltar a Lenin para compreender Marx e que transforma a filosofia viva numa ideologia morta a ser dissecada pela ciência.

A tese do corte epistemológico e a desqualificação dos textos de 1845 como ideológicos são categoricamente desmentidas pelo testemunho do próprio Marx no prefácio da Crítica da Economia Política de 1859, onde ele afirma explicitamente que A Ideologia Alemã representou a realização de seu acerto de contas com a consciência filosófica anterior e que o manuscrito foi abandonado à crítica roedora dos ratos não por rejeição de seu conteúdo, mas porque o objetivo principal de autoesclarecimento havia sido alcançado; ademais, a análise interna dos textos revela que a crítica a Hegel nos Manuscritos de 1844 já continha implicitamente a superação de Feuerbach, e que a evolução dos conceitos em Marx não obedece a uma ruptura brusca, mas a uma gênese transcendental onde conceitos como alienação não são abandonados, mas retificados e fundamentados na realidade da práxis, deixando de ser determinações da consciência para tornarem-se determinações da existência real dos indivíduos.

A unidade profunda da obra de Marx reside na unicidade de seu projeto filosófico, que é a busca incansável pela determinação da realidade última como práxis e vida subjetiva, uma teleologia que rege a aparição, a crítica e a substituição dos conceitos ao longo de sua trajetória intelectual, onde apenas desaparecem os conceitos cujo conteúdo é exaurido pelo horizonte ontológico do hegelianismo, como a essência genérica ou o ser político abstrato, enquanto permanecem e se aprofundam aqueles que referem à subjetividade e à vida; portanto, é um erro crasso dividir a obra em um período jovem humanista e um período maduro científico dominado por conceitos de estrutura, pois conceitos como forças produtivas e classes sociais não são os conceitos fundamentais do pensamento de Marx, mas sim realidades derivadas que necessitam de explicação genealógica a partir da práxis individual, sendo a inversão dessa ordem — a hipóstase das classes e das forças produtivas como naturantes — a marca distintiva da ideologia marxista em oposição à filosofia de Marx.

Uma leitura fenomenológica que opere a repetição das intuições fundamentais de Marx revela que, em O Capital, a estrutura da explicação teórica inverte a relação estabelecida pelo marxismo vulgar, pois os conceitos econômicos e sociais revelam-se fundados em conceitos ontológicos radicais; a análise demonstra, por exemplo, que a distinção entre capital constante e capital variável remete, para além da economia, à distinção ontológica entre o trabalho morto e a subjetividade viva da práxis, sendo esta última a única fonte de valor e a verdadeira substância da história, enquanto as forças produtivas objetivas desempenham um papel apenas negativo ou ilusório no desenvolvimento do capitalismo; assim, a história da subjetividade é a verdadeira história das forças produtivas e do mundo, e situar as estruturas objetivas na origem da análise é regredir ao fetichismo que Marx dedicou sua vida a desconstruir.

A restituição do pensamento de Marx exige um método que o tome a sério como filosofia que dá conta de si mesma, recusando a psicanálise textual que busca discursos latentes através de sintomas ou falhas, e assumindo o esforço de compreender o que o filósofo quis dizer na iminência de suas evidências; essa compreensão interior, que recupera a primazia dos indivíduos vivientes como princípio absoluto, oferece não apenas a chave para a coerência teórica da obra, mas também uma possível explicação para o fracasso histórico e os horrores dos regimes do século XX que se reclamaram de Marx, regimes que, ao fundarem-se na abstração do marxismo e na negação da subjetividade individual em favor de hypóstases coletivas, reproduziram a estrutura de alienação denunciada pela própria filosofia que julgavam encarnar.

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