Michel Henry (Marx) – a teoria do proletariado e a revolução
Henry, Michel. Marx. vol. I. Una filosofía de la realidad. - 1a ed. - Buenos Aires : Ediciones La Cebra, 2011.
A crítica da religião em Karl Marx, longe de se encerrar numa repetição da análise de Ludwig Feuerbach, utiliza esta apenas como ponto de partida para um movimento de transcendência em direção à realidade, rompendo com o plano das representações e da consciência onde a crítica teológica permanecia confinada; essa ruptura fundamenta-se na compreensão de que a religião é a realização fantástica da essência humana precisamente porque tal essência carece de realidade verdadeira no mundo efetivo, constituindo a miséria religiosa simultaneamente a expressão da miséria real e o protesto contra ela, o que impõe à filosofia a tarefa de dissipar a auréola do vale de lágrimas para criticar o próprio vale, transformando a crítica do céu na crítica da terra, do direito e da política.
Na análise desenvolvida em A Questão Judaica, o movimento em direção à realidade demonstra a inoperância da dialética de Bruno Bauer, que exigia a renúncia à religião particular como condição para a cidadania universal no Estado, pois tal exigência permanece estranha à realidade efetiva da sociedade civil onde a religião persiste como vida privada; Marx evidencia que a emancipação política é ilusória ao constatar que o Estado ateu ou laico não suprime a religiosidade, mas a relega à esfera da sociedade civil, a qual se revela como o verdadeiro fundamento profano do judaísmo, identificado não com a teologia, mas com a necessidade prática, o egoísmo e o dinheiro, de modo que a emancipação real do judeu coincide com a emancipação da humanidade em relação ao espírito prático do comércio que o cristianismo, em seu egoísmo espiritualista, acabou por universalizar.
O humanismo preconizado nos Manuscritos de 1844 como superação positiva da religião conduz, paradoxalmente, a uma realidade que possui a mesma estrutura ontológica da consciência e da religião que se pretendia superar, visto que a sociedade é concebida como o resultado da objetivação de si da essência humana; a suposta diferença entre a duplicação intelectual na consciência e a duplicação ativa no trabalho desfaz-se diante da homogeneidade ontológica entre ambas, pois tanto o trabalho quanto a consciência são definidos como processos de exteriorização onde o ser genérico se contempla num mundo por ele criado, revelando que a “sociedade” em Marx é pensada através das categorias da metafísica da subjetividade e da objetivação do universal.
A transição da crítica da religião para a realidade alemã na Introdução de 1844 defronta-se com o anacronismo histórico da Alemanha, que partilha as restaurações dos povos modernos sem ter partilhado as suas revoluções, vivendo a sua história política apenas no pensamento e na filosofia, o que torna a teoria alemã a única contemporânea efetiva do presente histórico; consequentemente, a resposta para o atraso prático da Alemanha não pode surgir da própria realidade social, caracterizada pela mediocridade filistina e pela ausência de conflitos radicais, mas deve ser deduzida da filosofia, transformando a questão alemã numa construção teórica a priori onde a realidade futura é preformada pelas exigências da especulação.
A construção a priori do proletariado surge como a necessidade de encontrar uma base material passível de ser informada pela teoria alemã da emancipação radical, exigindo a formação de uma classe que não seja uma classe da sociedade burguesa, mas a dissolução de todas as classes, uma esfera que possua um caráter universal devido aos seus sofrimentos universais e que encarne a perda total do homem para poder realizar a sua reconquista total; o proletariado é assim deduzido não da observação empírica da condição operária, mas da lógica da negação absoluta, sendo definido como o coração de uma emancipação da qual a filosofia é a cabeça, estabelecendo uma afinidade essencial onde a classe encontra na teoria as suas armas espirituais e a teoria encontra na classe as suas armas materiais.
A genealogia do conceito de dialética, fundamental para a concepção do proletariado e da revolução, não remonta exclusivamente ao platonismo ou a Georg Wilhelm Friedrich Hegel, mas encontra suas raízes profundas na alquimia medieval e em pensadores como Paracelso, onde a transformação dos metais implicava a ideia de uma alteração ontológica interna do ente e não uma simples substituição mecânica, pressupondo que a realidade é habitada por um devir e por um sofrimento da matéria que aspira à sua própria transmutação em ouro, prefigurando a noção de uma negatividade imanente que trabalha o ser em direção à sua realização.
A matriz luterana da dialética desempenha um papel decisivo na formação da metafísica alemã, especificamente através da tentativa de Martinho Lutero de resolver os paradoxos da cristologia e da eucaristia mediante a communicatio idiomatum, que postula a unidade das propriedades contrárias numa mesma pessoa; ao traduzir a kénosis (o esvaziamento de Cristo) como alienação (Entäußerung) e ao afirmar que a salvação só emerge do abismo do pecado e do desespero, Lutero estabelece o modelo dialético onde a negação radical é a condição indispensável da afirmação radical, transformando a contradição e o devir na essência da verdadeira razão oposta à lógica silogística.
A essência original da dialética reside, portanto, na fenomenologia da vida subjetiva e na experiência patética das suas tonalidades afetivas fundamentais, onde o sofrimento extremo e o desespero se convertem, num salto qualitativo, em certeza e alegria, tal como analisado por Søren Kierkegaard; é na imanência da vida que a oposição dos contrários e a sua resolução dramática possuem validade fenomenológica, constituindo o pathos que alimenta secretamente o esquema dialético abstrato.
A ideologia marxista constitui-se através de uma metabasis eis allo genos, uma transferência indevida da dialética da esfera da vida subjetiva e espiritual para a esfera das coisas materiais e da história social, atribuindo ao processo econômico e político virtudes que pertencem apenas à experiência interior, tais como o poder do negativo de gerar o novo e a teleologia imanente que conduz à regeneração total; ao projetar o esquema da kénosis e da redenção sobre a história do capital e do trabalho, Marx transforma a revolução num conceito mítico que promete a salvação através da catástrofe, substituindo a conversão religiosa pela convulsão social.
O conceito de revolução, ao reunir os elementos do esquema dialético da negação e da totalidade, revela-se como uma representação imaginária e fantasmática da vida, onde a ambiguidade das pulsões de vida e de morte e a sucessão abrupta das tonalidades afetivas são projetadas na tela da história política; a revolução total funciona como o substituto laico do fim dos tempos e da parusia, atraindo para si a investidura libidinal maciça que a religião outrora captava, e prometendo uma mudança ontológica do homem que a ação política, por natureza limitada e técnica, é incapaz de fornecer.
A tese da pauperização absoluta do proletariado é a expressão econômica do dogma metafísico da negatividade, exigindo que a classe redentora seja despojada de toda positividade e reduzida ao nada social para poder operar a negação da negação; a refutação histórica dessa tese pela evolução das sociedades industriais, que assistiram à elevação do nível de vida e à diferenciação interna da classe operária, obriga o marxismo a um jesuitismo teórico interminável para salvar o dogma contra a realidade, evidenciando que a doutrina não é uma ciência empírica, mas uma mitologia especulativa impermeável aos fatos.
A degenerescência mitológica do marxismo torna-se patente nas tentativas contemporâneas de substituir o proletariado industrial, que falhou na sua missão histórica de negatividade absoluta, por novos sujeitos revolucionários como os povos subdesenvolvidos, as minorias marginais, os estudantes ou as pulsões sexuais reprimidas; tais tentativas de síntese eclética, como a união de marxismo e freudismo, demonstram a vacuidade formal do conceito de revolução, que permanece como uma estrutura oca de negação salvadora à espera de qualquer conteúdo contingente que possa preenchê-la, confirmando o caráter puramente ideológico de uma teoria que sobrevive à dissolução de seus fundamentos reais.
A crítica radical à filosofia operada pelo marxismo, que a denuncia como ideologia, inverte-se contra o próprio marxismo, pois enquanto a filosofia clássica alemã mantinha uma referência, ainda que especulativa, a um campo de objetividade original (a consciência de si ou a vida), o materialismo histórico perde essa referência ao aplicar categorias espirituais à matéria cega; assim, o anúncio do fim da filosofia pelo marxismo marca, na verdade, o momento em que a filosofia se perde na ideologia, transformando-se num sistema de ideias sem correspondência com a realidade que pretende determinar, culminando na mais extravagante mitologia que o espírito ocidental produziu.
A persistência do esquema negacionista no pensamento revolucionário, a despeito de todas as desmentidas históricas, revela a função compensatória da política, que tende a substituir a vida real e a ocupar o lugar de complemento imaginário para a miséria existencial; onde a realidade permanece insatisfatória e estranha ao movimento da vida, a exigência de mudar “tudo” através da política torna-se a nova forma de religiosidade, o suspiro da criatura oprimida que projeta num futuro catastrófico a resolução das contradições que é incapaz de viver e superar no presente da sua imanência.
