Michel Henry (Marx) – a essência original da praxis
Henry, Michel. Marx. vol. I. Una filosofía de la realidad. - 1a ed. - Buenos Aires : Ediciones La Cebra, 2011.
A questão da determinação da realidade constitui o eixo obsessivo e o tema central do pensamento de Karl Marx desde o manuscrito de 1842, onde a crítica à filosofia do direito de Georg Wilhelm Friedrich Hegel não visa apenas corrigir determinações conceituais, mas denunciar a perda da realidade no seio do idealismo, estabelecendo uma oposição ontológica radical entre o Estado político (domínio da irrealidade, do imaginário e da sofística) e a sociedade civil (domínio da realidade efetiva), uma distinção que prefigura a separação entre a vida do cidadão e a vida do indivíduo concreto.
A designação da realidade como “prática” e da irrealidade como “teoria” nos escritos de 1843-1844 é tomada diretamente de Ludwig Feuerbach, para quem a prática não significa primariamente a ação transformadora, mas o real em geral oposto à representação, à imagem e ao sonho religioso; a crítica da religião de Feuerbach, que transpõe o objeto da imaginação para o objeto da realidade, fundamenta-se na tese de que a teoria é o campo da ilusão e da cópia, enquanto a prática é o campo da coisa mesma e da verdade sensível, tal como exemplificado na análise do protestantismo como negação prática do cristianismo (afirmação do homem natural na sociedade civil) e sua manutenção teórica (fé num Deus transcendente).
A terminologia de Marx em A Sagrada Família e n'A Questão Judaica, ao opor sistematicamente atributos “teóricos” (pensamento, saber, cabeça, sujeito, crítica) a atributos “práticos” (ser, energia natural, coração, objeto, homem, sociedade real), revela uma dependência profunda da ontologia feuerbachiana, que define o ser verdadeiro pela inmediatez da presença sensível; contudo, essa definição de realidade como “ser sensível” encerra um paralogismo fundamental, confundindo a significação ôntica de sensibilidade (o ente material, a coisa sentida) com a sua significação ontológica (a capacidade de sentir, a abertura ao ser, a subjetividade passiva), o que leva o materialismo de Feuerbach a atribuir ao ente material qualidades que pertencem exclusivamente à subjetividade, como o sofrimento e o amor.
Os Manuscritos de 1844, ao definirem o homem como um “ser natural e objetivo”, reproduzem a ambiguidade do materialismo feuerbachiano, concebendo a realidade humana como uma sensibilidade transcendental onde “ter um objeto fora de si” significa a estrutura intencional da necessidade (besoin); a natureza não é o em-si bruto, mas a natureza humana, o correlato da objetivação das forças essenciais do homem, de modo que a crítica de Marx a Hegel nesse período — acusando-o de reduzir a realidade ao pensamento — falha o seu alvo, pois a “intuição” sensível que Marx opõe ao conceito possui a mesma estrutura de objetivação e exteriorização que o pensamento hegeliano.
A verdadeira ruptura ontológica ocorre nas Teses sobre Feuerbach (1845), onde Marx rejeita não apenas o idealismo da consciência de si, mas também o “materialismo intuitivo” de Feuerbach, compreendendo que a intuição, enquanto visão e recepção passiva do objeto, é incapaz de fundar a realidade; a realidade não é a objetividade (Gegenständlichkeit) dada à contemplação, mas a práxis subjetiva, o que implica que o ser verdadeiro não reside naquilo que é visto (teoria), mas naquilo que é feito na imanência radical da ação.
A primeira tese sobre Feuerbach opera uma inversão que não é a mera substituição do pensamento pela intuição (como fez Feuerbach), mas a substituição da própria intuição pela ação; a heterogeneidade estrutural entre ação e intuição reside no fato de que agir não é ver: a ação, considerada em si mesma e na sua efetividade fenomenológica, é cega, opaca e subjetiva, excluindo de si a distância espetacular da representação; quando a ação é “vista” ou intuída, ela torna-se um objeto exterior e deixa de ser apreendida na sua realidade interna de esforço e tensão vital.
A definição provisória da práxis como “atividade sensível humana” (sinnliche menschliche Tätigkeit) na primeira tese constitui um resquício terminológico que ameaça obscurecer a nova intuição de Marx, pois o adjetivo “sensível” arrasta consigo a ontologia da intuição e da objetividade que se pretende superar; para pensar a ação real, Marx deve despojá-la da determinação de “sensível” (no sentido de objeto de contemplação) e compreendê-la como a subjetividade absoluta que é anterior a qualquer objetivação teórica, como a vida que se experimenta a si mesma na necessidade e no trabalho antes de se representar num mundo.
A distinção entre prática e teoria não é uma distinção epistemológica ou ideológica, mas a distinção ontológica fundamental: a prática é a esfera da realidade efetiva, da vida individual e da produção das condições de existência, enquanto a teoria é a esfera da representação, da visão e da irrealidade que, embora fundada na prática, é incapaz de a compreender adequadamente ou de a transformar por seus próprios meios; a “prática revolucionária” e a “prática social” não são entidades autônomas ou sínteses dialéticas de pensamento e ação, mas designações para a atividade real dos indivíduos que, em certas condições, tomam consciência de sua situação, sem que essa consciência suprima a natureza subjetiva e imanente da ação.
O fundamento do mundo sensível e da ciência reside na práxis histórica: o objeto que a intuição sensível capta (como a cerejeira na Alemanha) não é um dado eterno da natureza, mas o produto da indústria e do comércio, da atividade de gerações sucessivas; essa tese implica que a realidade que a teoria contempla é, na sua essência, o resultado da atividade subjetiva humana, de modo que a “natureza” dada à intuição é já uma natureza histórica e social, e a verdade da teoria depende ontologicamente da prática que a sustenta e lhe fornece conteúdo.
A questão da verdade objetiva (gegenständliche Wahrheit) do pensamento humano não é uma questão teórica de escolástica, mas uma questão prática (Tese II); isto significa que a verdade não é a conformidade de uma representação com um objeto dado, mas a revelação do ser na efetividade da ação; o pensamento deve provar a sua verdade, isto é, a sua realidade e potência (Diesseitigkeit), na prática, o que transforma a teoria, em última análise, numa indicação ou prescrição que remete para fora de si, para a realização prática que é o único critério de validação ontológica.
A crítica de Marx ao moralismo e a transformação da filosofia em injunção (“os filósofos apenas interpretaram o mundo, trata-se de transformá-lo”) decorrem dessa nova ontologia: se a realidade é práxis e não objeto de contemplação, então o discurso teórico que permanece na pura interpretação falha em tocar o ser; a verdade só é alcançada quando o pensamento se nega a si mesmo enquanto esfera autônoma e se converte em momento da ação transformadora, reconhecendo que a solução dos mistérios teóricos reside na vida prática dos homens e na compreensão dessa prática.
A ideologia define-se precisamente pela autonomização da teoria em relação à prática, pelo esquecimento da gênese prática das ideias e pela pretensão do pensamento de constituir uma esfera independente de verdades e valores; a genealogia da ideologia exige, portanto, a recondução das formações ideais (Estado, Direito, Religião) ao solo da vida subjetiva e da divisão do trabalho, demonstrando que as “potências objetivas” da consciência são, na verdade, projeções e representações da atividade vital dos indivíduos reais.
