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Merleau-Ponty (FP) – sensações

O mundo está ali antes de qualquer análise que eu possa fazer dele, e seria artificial fazê-lo derivar de uma série de sínteses que ligariam as sensações, depois os aspectos perspectivos do objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e não devem ser realizados antes dela. Prefácio

Mas ver é obter cores ou luzes, ouvir é obter sons, sentir é obter qualidades e, para saber o que é sentir, não basta ter visto o vermelho ou ouvido um la? O vermelho e o verde não são sensações, são sensíveis, e a qualidade não é um elemento da consciência, é uma propriedade do objeto. Intro I

Em vez de nos oferecer um meio simples de delimitar as sensações, se nós a tomamos na própria experiência que a revela, ela é tão rica e tão obscura quanto o objeto ou quanto o espetáculo perceptivo inteiro. Intro I

Mas, se aplicamos ao aparelho lesado um excitante suficientemente extenso, as sensações específicas reaparecem; a elevação dos patamares é compensada por uma exploração mais enérgica da mão. Intro I

Se agora nós nos voltamos, como se faz aqui, para a experiência perceptiva, observamos que a ciência só consegue construir uma aparência de subjetividade: ela introduz sensações que são coisas ali onde a experiência mostra que já existem conjuntos significativos, ela sujeita o universo fenomenal a categorias que só são exigidas no universo da ciência. Intro I

Se admitimos um “sentir” no sentido clássico, a significação do sensível só pode consistir em outras sensações presentes ou virtuais. Intro II

Ver uma figura só pode ser possuir simultaneamente as sensações pontuais que fazem parte dela. Intro II

A palavra círculo, a palavra ordem só puderam designar, nas experiências anteriores às quais me reporto, a maneira concreta pela qual nossas sensações se repartiam diante de nós, um certo arranjo de fato, uma maneira de sentir. Intro II

O conhecimento aparece como um sistema de substituições em que uma impressão anuncia outras sem nunca dar razão delas, em que palavras levam a esperar sensações, assim como a tarde leva a esperar a noite. Intro II

As imagens ou as sensações mais simples são, em última análise, tudo o que existe para se compreender nas palavras, os conceitos são uma maneira complicada de designá-las, e, como elas mesmas são impressões indizíveis, compreender é uma impostura ou uma ilusão, o conhecimento nunca tem domínio sobre seus objetos, que se ocasionam um ao outro, e o espírito funciona como uma máquina de calcular que não sabe por que seus resultados são verdadeiros. Intro II

Ora, as sensações e as imagens que deveriam iniciar e terminar todo conhecimento aparecem sempre em um horizonte de sentido, e a significação do percebido, longe de resultar de uma associação, está ao contrário pressuposta em todas as associações, quer se trate da sinopse de uma figura presente ou da evocação de experiências antigas. Intro II

Não seriam mais os mesmos elementos ligados de outra maneira, as mesmas sensações diferentemente associadas, o mesmo texto investido de um outro sentido, a mesma matéria em uma outra forma, mas verdadeiramente um outro mundo. Intro II

Pois uma coisa percebida, se fosse composta de sensações e de recordações, só seria determinada pelo auxílio das recordações, ela nada teria então em si mesma que pudesse limitar-lhes a invasão, ela não teria apenas este halo de “movido” que sempre tem, nós o dissemos, ela seria inapreensível, fugidia e sempre beirando a ilusão. Intro II

Se enfim se admite que as recordações não se projetam por si mesmas nas sensações, e que a consciência as confronta com o dado presente para reter apenas aqueles que se harmonizam com ele, então reconhece-se um texto originário que traz em si seu sentido e o opõe àquele das recordações: este texto é a própria percepção. Intro II

Como toda teoria empirista, esta só descreve processos cegos que nunca podem ser o equivalente de um conhecimento, porque não existe, neste amontoado de sensações e de recordações, ninguém que veja, que possa experimentar o acordo entre o dado e o evocado — e correlativamente nenhum objeto firme protegido por um sentido contra o pulular das recordações. Intro II

Retornando aos fenômenos, encontramos como camada fundamental um conjunto já pleno de um sentido irredutível: não sensações lacunares, entre as quais deveriam encravar-se recordações, mas a fisionomia, a estrutura da paisagem ou da palavra, espontaneamente conformes às intenções do momento, assim como às experiências anteriores. Intro II

Mais geralmente, os objetos reais que não fazem parte de nosso campo visual só nos podem estar presentes por imagens, e é por isso que eles são apenas “possibilidades permanentes de sensações”. Intro II

Mesmo se aquilo que percebemos não corresponde às propriedades objetivas do estímulo, a hipótese de constância obriga a admitir que as “sensações normais” já estão ali. Intro III

Mas, quando se quer desenhar a estrutura da percepção, isso é feito voltando ao pontilhado das sensações. Intro III

O intelectualismo vive da refutação do empirismo e nele o juízo tem frequentemente a função de anular a dispersão possível das sensações. Intro III

Para a própria consciência, como ela seria um raciocínio se não existem sensações que possam servir de premissas, como ela seria uma interpretação se antes dela não há nada a ser interpretado? Ao mesmo tempo em que assim se ultrapassa, com a ideia de sensação, a ideia de uma atividade simplesmente lógica, as objeções que fazíamos há pouco desaparecem. Intro III

Uma vez afastado o prejuízo das sensações, um rosto, uma assinatura, uma conduta deixam de ser simples “dados visuais” dos quais precisaríamos procurar, em nossa experiência interior, a significação psicológica, e o psiquismo do outro torna-se um objeto imediato enquanto conjunto impregnado de uma significação imanente. Intro IV

Ao considerar a Gestalt como tema de sua reflexão, o psicólogo rompe com o psicologismo, já que o sentido, a conexão, a “verdade” do percebido não resultam mais do encontro fortuito entre nossas sensações, tais como nossa natureza psicofisiológica as oferece a nós, mas determinam seus valores espaciais e qualitativos e são sua configuração irredutível. Intro IV

Sem dúvida, o psicologismo está ultrapassado, o sentido e a estrutura do percebido não são mais para nós o simples resultado de acontecimentos psicofisiológicos, a racionalidade não é mais um feliz acaso que faria concordarem sensações dispersas, e a Gestalt é reconhecida como originária. Intro IV

Se por diversas vezes se excita com um cabelo uma dada região da pele, têm-se primeiramente sensações pontuais, claramente distinguidas e a cada vez localizadas no mesmo ponto. Intro I

Meu corpo, dizia-se, é reconhecível pelo fato de me dar “sensações duplas”: quando toco minha mão direita com a mão esquerda, o objeto mão direita tem esta singular propriedade de sentir, ele também. Intro II

Quando pressiono minhas mãos uma contra a outra, não se trata então de duas sensações que eu sentiria em conjunto, como se percebem dois objetos justapostos, mas de uma organização ambígua em que as duas mãos podem alternar-se na função de “tocante” e de “tocada”. Intro II

Ao falar de “sensações duplas” queria-se dizer que, na passagem de uma função à outra, posso reconhecer a mão tocada como a mesma que dentro em breve será tocante — neste pacote de ossos e de músculos que minha mão direita é para minha mão esquerda, adivinho em um instante o invólucro ou a encarnação desta outra mão direita, ágil e viva, que lanço em direção aos objetos para explorá-los. Intro II

Enfim, quando os psicólogos quiseram reservar ao corpo próprio “sensações anestésicas” que nos dariam globalmente seus movimentos, ao passo que eles atribuíam os movimentos dos objetos exteriores a uma percepção mediata e à comparação das posições sucessivas, podia-se opor-lhes que o movimento, sendo uma relação, não poderia ser sentido e que exige um percurso mental, mas essa objeção só condenava a linguagem deles. Intro II

A incompletude de meu corpo, sua apresentação marginal, sua ambiguidade enquanto corpo tocante e corpo tocado não podiam então ser traços de estrutura do próprio corpo; não afetavam sua ideia, tornavam-se os “caracteres distintivos” dos conteúdos de consciência que compõem nossa representação do corpo: esses conteúdos são constantes, afetivos e bizarramente emparelhados em “sensações duplas”, mas, com exceção disso, a representação do corpo é uma representação como as outras e, correlativamente, o corpo é um objeto como os outros. Intro II

Quando se quer esclarecer o fenômeno do membro fantasma ligando-o ao esquema corporal do paciente, só se acrescenta algo às explicações clássicas pelos traços cerebrais e as sensações renascentes se o esquema corporal, em lugar de ser o resíduo da cinestesia costumeira, torna-se sua lei de constituição. Intro III

E com efeito sua espacialidade não é, como a dos objetos exteriores ou a das “sensações espaciais”, uma espacialidade de posição, mas uma espacialidade de situação. Intro III

O que reúne as “sensações táteis” de minha mão e as liga às percepções visuais da mesma mão, assim como às percepções dos outros segmentos do corpo, é um certo estilo dos gestos de minha mão, que implica um certo estilo dos movimentos de meus dedos e contribui, por outro lado, para uma certa configuração de meu corpo. Intro IV

É-se tentado a dizer que, através das sensações produzidas pela pressão da bengala na mão, o cego constrói a bengala e suas diferentes posições, depois que estas, por sua vez, medeiam um objeto à segunda potência, o objeto externo. Intro IV

Mesmo se me absorvo na experiência de meu corpo e na solidão das sensações, não chego a suprimir toda referência de minha vida a um mundo, a cada instante alguma intenção brota novamente de mim, mesmo que seja em direção aos objetos que me circundam e caem sob meus olhos, ou em direção aos instantes que sobrevêm e impelem para o passado aquilo que acabo de viver. Intro V

Por exemplo, o filósofo empirista considera um sujeito X prestes a perceber e procura descrever aquilo que se passa: existem sensações que são estados ou maneiras de ser do sujeito e que, a esse título, são verdadeiras coisas mentais. II I

O sujeito perceptivo é o lugar dessas coisas, e o filósofo descreve as sensações e seu substrato como se descreve a fauna de um país distante — sem perceber que ele mesmo percebe, que ele é sujeito perceptivo e que a percepção, tal como ele a vive, desmente tudo o que ele diz da percepção em geral. II I

Portanto, as sensações, as “qualidades sensíveis”, estão longe de se reduzir à experiência de um certo estado ou de um certo quale indizíveis, elas se oferecem com uma fisionomia motora, estão envolvidas por uma significação vital. II I

Sabe-se há muito tempo que existe um “acompanhamento motor” das sensações, que os estímulos desencadeiam “movimentos nascentes” que se associam à sensação ou à qualidade e formam um halo em torno dela, que o “lado perceptivo” e o “lado motor” do comportamento se comunicam. II I

O intelectualismo não fala dos sentidos porque, para ele, sensações e sentidos só aparecem quando eu retorno ao ato concreto de conhecimento para analisá-lo. II I

Não se trata aqui de reduzir a significação da palavra “quente” a sensações de calor, segundo as fórmulas empiristas. II I

Portanto, nós não reduzimos a significação da palavra e nem mesmo a significação do percebido a uma soma de “sensações corporais”, mas dizemos que o corpo, enquanto tem “condutas”, é este estranho objeto que utiliza suas próprias partes como simbólica geral do mundo, e através do qual, por conseguinte, podemos “frequentar” este mundo, “compreendê-lo” e encontrar uma significação para ele. II I

Portanto, se existe consciência de algo, é porque o sujeito não é absolutamente nada, e as “sensações”, a “matéria” do conhecimento, não são momentos ou habitantes da consciência, elas estão do lado do constituído. II I

Quando quero fazê-lo, deixo, por assim dizer, de mergulhar na mesa através de meu olhar, volto-me para mim que percebo, e me dou conta então de que minha percepção precisou atravessar certas aparências subjetivas, interpretar certas “sensações” minhas, enfim ela aparece na perspectiva de minha história individual. II I

É a partir do ligado que tenho, secundariamente, consciência de uma atividade de ligação, quando, assumindo a atitude analítica, decomponho a percepção em qualidades e em sensações e quando, para encontrar a partir delas o objeto no qual primeiramente eu estava jogado, sou obrigado a supor um ato de síntese que não é senão a contrapartida de minha análise. II I

Assim como as ilustrações de um livro nos parecem às avessas se por diversão o puseram “de cabeça para baixo” enquanto olhávamos para outro lado, a massa de sensações que constituem o panorama foi revirada, também ela posta de “cabeça para baixo”. II II

Durante esse período, essa outra massa de sensações que é o mundo tátil permaneceu “direita”; ela não pode mais coincidir com o mundo visual e, particularmente, o sujeito tem duas representações inconciliáveis de seu corpo, uma que lhe é dada por suas sensações táteis e pelas “imagens visuais” que ele pôde conservar do período anterior à experiência, a outra sendo a da visão presente, que lhe mostra seu corpo “de pernas para o ar”. II II

Explica-se a inversão da paisagem, depois o retorno à visão normal, supondo que o alto e o baixo se confundem e variam com a direção aparente da cabeça e dos pés dados na imagem, que eles estão, por assim dizer, indicados no campo sensorial pela distribuição efetiva das sensações. II II

Mas se o corpo, enquanto mosaico de sensações dadas, não define nenhuma direção, ao contrário o corpo enquanto agente desempenha um papel essencial no estabelecimento de um nível. II II

No decorrer da experiência, constata-se uma fase intermediária em que o corpo tátil parece invertido e a paisagem direita porque, já vivendo na paisagem, eu a percebo por isso mesmo como direita, e porque a perturbação experimental é atribuída ao corpo próprio que é, assim, não uma massa de sensações efetivas, mas o corpo que é preciso ter para perceber um espetáculo dado. II II

Não somos “uma reunião de olhos, de ouvidos, de órgãos táteis com suas projeções cerebrais (…) Assim como todas as obras literárias (…) são casos particulares nas permutas possíveis dos sons que constituem a linguagem e de seus signos literais, da mesma maneira as qualidades ou sensações representam os elementos dos quais é feita a grande poesia de nosso mundo (Umwelt). II III

Mas tão seguramente quanto alguém que só conhecesse os sons e as letras de forma alguma conheceria a literatura e não apreenderia seu ser último, mas absolutamente nada, da mesma forma o mundo não é dado, e nada dele é acessível àqueles a quem as ‘sensações’ são dadas”. II III

Não começamos por conhecer os aspectos perspectivos da coisa; ela não é mediada por nossos sentidos, nossas sensações, nossas perspectivas, nós vamos diretamente a ela e é secundariamente que percebemos os limites de nosso conhecimento e de nós mesmos enquanto cognoscentes. II III

A “interpretação” que dou de minhas sensações deve ser motivada, e ela só pode sê-lo pela própria estrutura dessas sensações, de forma que se pode dizer indiferentemente que não existe interpretação transcendente, não existe juízo que não brote da própria configuração dos fenômenos — e que não existe esfera da imanência, nenhum domínio em que minha consciência esteja em casa e assegurada contra todo risco de erro. III I

Assim como a localização dos objetos no espaço, segundo o próprio Kant, não é uma operação apenas espiritual e utiliza a motricidade do corpo, o movimento dispondo as sensações no ponto de sua trajetória em que ele se encontra quando elas se produzem, da mesma maneira o geômetra, que em suma estuda as leis objetivas da localização, só conhece as relações que lhe interessam traçando-as pelo menos virtualmente com seu corpo. III I

Não existe hyle, nenhuma sensação sem comunicação com as outras sensações ou com as sensações dos outros, e por essa razão mesma não existe morphe, nenhuma apreensão ou apercepção que esteja encarregada de dar um sentido a uma matéria insignificante e de assegurar a unidade a priori de minha experiência e da experiência intersubjetiva. III I

O que se passa exatamente? É preciso dizer que ambos temos sensações privadas, uma matéria de conhecimento para sempre incomunicável — que, no que concerne ao puro vivido, estamos encerrados em perspectivas distintas —, que para nós dois a paisagem não é idem numero e que se trata apenas de uma identidade específica? Ao considerar minha própria percepção, antes de qualquer reflexão objetivante, em nenhum momento tenho consciência de encontrar-me encerrado em minhas sensações. III I

Quando penso em Paulo, não penso em um fluxo de sensações privadas em relações mediatas com o meu através de signos interpostos, mas em alguém que vive o mesmo mundo que eu, a mesma história que eu, e com quem eu me comunico através desse mundo e através dessa história. III I

Aconteceu não um novo lote de sensações ou de estados de consciência, nem mesmo uma nova mônada ou uma nova perspectiva, já que não estou fixado em nenhuma e já que posso mudar de ponto de vista, sujeito apenas a sempre ocupar um ponto de vista e a ocupar somente um a cada vez — digamos que aconteceu uma nova possibilidade de situações. III I

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