Merleau-Ponty (FP) – sensação
Assim, minha sensação do vermelho é apercebida como manifestação de um certo vermelho sentido, este como manifestação de uma superfície vermelha, esta como manifestação de um papelão vermelho, e este enfim como manifestação ou perfil de uma coisa vermelha, deste livro. Prefácio
Iniciando o estudo da percepção, encontramos na linguagem a noção de sensação, que parece imediata e clara: eu sinto o vermelho, o azul, o quente, o frio. Intro I
Eu poderia entender por sensação, primeiramente, a maneira pela qual sou afetado e a experiência de um estado de mim mesmo. Intro I
O que é admitir que deveríamos procurar a sensação aquém de qualquer conteúdo qualificado, já que o vermelho e o verde, para se distinguirem um do outro como duas cores, precisam estar diante de mim, mesmo sem localização precisa, e deixam portanto de ser eu mesmo. Intro I
A sensação pura será a experiência de um “choque” indiferenciado, instantâneo e pontual. Intro I
Renunciarei portanto a definir a sensação pela impressão pura. Intro I
A qualidade determinada, pela qual o empirismo queria definir a sensação, é um objeto, não um elemento da consciência, e é o objeto tardio de uma consciência científica. Intro I
Na falta de uma experiência da sensação, será que nós encontramos, pelo menos em suas causas e em sua gênese objetiva, razões para mantê-la enquanto conceito explicativo? A fisiologia, à qual o psicólogo se dirige como a uma instância superior, está no mesmo embaraço que a psicologia. Intro I
Esses casos em que o fenômeno não adere ao estímulo devem ser mantidos no quadro da lei de constância e explicados por fatores adicionais — atenção e juízo — ou então é preciso rejeitar a própria lei? Quando o vermelho e o verde, apresentados em conjunto, dão uma resultante cinza, admite-se que a combinação central dos estímulos pode imediatamente dar lugar a uma sensação diferente daquilo que exigiriam os estímulos objetivos. Intro I
A mesma conclusão não se aplicaria aos três primeiros exemplos que citamos? Se a atenção, se uma ordem mais precisa, se o repouso, se o exercício prolongado finalmente restabelecem percepções conformes à lei de constância, isso não prova seu valor geral, pois, nos exemplos citados, a primeira aparência tinha um caráter sensorial do mesmo modo que os resultados obtidos finalmente, e a questão é saber se a percepção atenta, a concentração do sujeito em um ponto do campo visual — por exemplo, a “percepção analítica” das duas linhas principais na ilusão de Müller-Lyer —, em lugar de revelar a “sensação normal”, não substituem o fenômeno original por uma montagem excepcional. Intro I
Mas, quando se procura uma definição “objetiva” da sensação, não é apenas o estímulo físico que se esquiva. Intro I
Entrevemos, no grau elementar da sensibilidade, uma colaboração dos estímulos parciais entre si e do sistema sensorial com o sistema motor que, em uma constelação fisiológica variável, mantêm constante a sensação, o que portanto proíbe definir o processo nervoso como a simples transmissão de uma mensagem dada. Intro I
E, se tentamos apreender a “sensação” na perspectiva dos fenômenos corporais que a preparam, encontramos não um indivíduo psíquico, função de certas variáveis conhecidas, mas uma formação já ligada a um conjunto e já dotada de um sentido, que só se distingue em grau das percepções mais complexas e que portanto não nos adianta nada em nossa delimitação do sensível puro. Intro I
Não há definição fisiológica da sensação e, mais geralmente, não há psicologia fisiológica autônoma porque o próprio acontecimento fisiológico obedece a leis biológicas e psicológicas. Intro I
Dizíamos que, quando o psicólogo pede ao fisiólogo uma definição da sensação “por suas causas”, ele encontra nesse terreno as suas próprias dificuldades, e vemos agora por quê. Intro I
A noção clássica de sensação não era um conceito de reflexão, mas um produto tardio do pensamento voltado para os objetos, o último termo da representação do mundo, o mais distanciado da fonte constitutiva e, por essa razão, o menos claro. Intro I
A teoria da sensação, que compõe todo saber com qualidades determinadas, nos constrói objetos limpos de todo equívoco, puros, absolutos, que são antes o ideal do conhecimento do que seus temas efetivos; ela só se adapta à superestrutura tardia da consciência. Intro I
É ali que “ se realiza de modo aproximado a ideia da sensação”. Intro I
Isso significa que a percepção está mais estritamente ligada ao excitante local em seu estado tardio do que em seu estado precoce, e é mais conforme à teoria da sensação no adulto do que na criança. Intro I
A noção de sensação, uma vez introduzida, falseia toda a análise da percepção. Intro II
Mas a sensação, uma vez introduzida como elemento do conhecimento, não nos deixa a escolha da resposta. Intro II
Para receber nela mesma uma significação que verdadeiramente a penetre, para integrar-se em um “contorno” ligado ao conjunto da “figura” e independente do “fundo”, a sensação pontual deveria deixar de ser uma coincidência absoluta e, por conseguinte, deixar de ser enquanto sensação. Intro II
Uma vez que se definiu a consciência como sensação, qualquer modo de consciência deverá tomar sua clareza de empréstimo à sensação. Intro II
A sensação não admite outra filosofia senão o nominalismo, quer dizer, a redução do sentido ao contra-senso da semelhança confusa, ou ao não-senso da associação por contiguidade. Intro II
Que o fundo continue sob afigura, que seja visto sob a figura, quando todavia ela o recobre, este fenômeno que envolve todo o problema da presença do objeto é, ele também, escondido pela filosofia empirista, que trata essa parte do fundo como invisível, em virtude de uma definição fisiológica da visão, e a reconduz à condição de simples qualidade sensível, supondo que ela é dada por uma imagem, quer dizer, por uma sensação enfraquecida. Intro II
O juízo é frequentemente introduzido como aquilo que falta à sensação para tornar possível uma percepção. Intro III
A sensação não é mais suposta como elemento real da consciência. Intro III
Continua sendo possível que a teoria da percepção, se idealmente parte de uma intuição cega, chegue por compensação a um conceito vazio, e que o juízo, contrapartida da sensação pura, recaia em uma função geral de ligação indiferente aos seus objetos, ou até mesmo volte a ser uma força psíquica revelável por seus efeitos. Intro III
Essa distinção se apaga no intelectualismo, porque o juízo está em todas as partes em que não está a pura sensação, quer dizer, em todas as partes. Intro III
Mas a alternativa entre a sensação e o juízo obriga a dizer que a mudança da figura, não dependendo dos “elementos sensíveis” que, como os estímulos, permanecem constantes, só pode depender de uma mudança na interpretação e que, enfim, “a concepção do espírito modifica a própria percepção”, “a aparência adquire forma e sentido no comando”. Intro III
Compreendida a percepção como interpretação, a sensação, que serviu de ponto de partida, está definitivamente ultrapassada, qualquer consciência perceptiva já estando para além dela. Intro III
A sensação não é sentida e a consciência é sempre consciência de um objeto. Intro III
Chegamos à sensação quando, refletindo sobre nossas percepções, queremos exprimir que elas não são absolutamente nossa obra. Intro III
A pura sensação, definida pela ação dos estímulos sobre nosso corpo, é o “efeito último” do conhecimento, em particular do conhecimento científico, e é por uma ilusão, aliás natural, que a colocamos no começo e acreditamos que seja anterior ao conhecimento. Intro III
Para a própria consciência, como ela seria um raciocínio se não existem sensações que possam servir de premissas, como ela seria uma interpretação se antes dela não há nada a ser interpretado? Ao mesmo tempo em que assim se ultrapassa, com a ideia de sensação, a ideia de uma atividade simplesmente lógica, as objeções que fazíamos há pouco desaparecem. Intro III
Ele não se limita apenas à definição antropológica da sensação, da qual um e outro se servem, mas refere-se ao fato de que um e outro conservam a atitude natural ou dogmática, e a sobrevivência da sensação no intelectualismo é apenas um signo desse dogmatismo. Intro III
Quando o intelectualismo retomava a noção naturalista de sensação, neste passo estava implicada uma filosofia. Intro III
Ao contrário, essas noções adquirem seu sentido pleno se distinguimos o sentir da qualidade: agora a associação, ou, antes, a “afinidade” no sentido kantiano, é o fenômeno central da vida perceptiva, já que ela é a constituição, sem modelo ideal, de um conjunto significativo, e a distinção entre a vida perceptiva e o conceito, entre a passividade e a espontaneidade, não é mais apagada pela análise reflexiva, já que o atomismo da sensação não mais nos obriga a procurar em uma atividade de ligação o princípio de toda coordenação. Intro IV
Portanto, a “sensação” e o “juízo” perderam em conjunto a sua clareza aparente: nós percebemos que eles só eram claros pela intermediação do prejuízo do mundo. Intro IV
Da mesma maneira, nas lesões não-corticais da sensibilidade tátil, se certos conteúdos (temperaturas) são mais frágeis e os primeiros a desaparecer, não é porque um determinado território, destruído no doente, nos sirva para sentir o quente e o frio, já que a sensação específica será restituída se se aplicar um excitante suficientemente extenso, é antes porque a excitação só consegue assumir sua forma típica para um estímulo mais enérgico. Intro I
É ela ainda, e não a energia específica do aparelho interrogado, que faz com que um excitante dê lugar a uma sensação tátil ou a uma sensação térmica. Intro I
A medida que a excitação se repete, a localização se torna menos precisa, a percepção se desdobra no espaço, ao mesmo tempo em que a sensação deixa de ser específica: não é mais um contato, é uma queimadura, ora pelo frio, ora pelo calor. Intro I
O que eles exprimiam, muito mal a bem da verdade, pela “sensação cinestésica” era a originalidade dos movimentos que executo com meu corpo: eles antecipam diretamente a situação final, minha intenção só esboça um percurso especial para ir ao encontro da meta primeiramente dada em seu lugar, há como que um germe de movimento que só secundariamente se desenvolve como percurso objetivo. Intro II
O sujeito da percepção permanecerá ignorado enquanto não soubermos evitar a alternativa entre o naturante e o naturado, entre a sensação enquanto estado de consciência e enquanto consciência de um estado, entre a existência em si e a existência para si. II I
Retornemos então à sensação e observemo-la de tão perto que ela nos ensine a relação viva daquele que percebe com seu corpo e com seu mundo. II I
A psicologia indutiva nos auxiliará a procurar para ela um novo estatuto, mostrando que a sensação não é nem um estado ou uma qualidade, nem a consciência de um estado ou de uma qualidade. II I
Sabe-se há muito tempo que existe um “acompanhamento motor” das sensações, que os estímulos desencadeiam “movimentos nascentes” que se associam à sensação ou à qualidade e formam um halo em torno dela, que o “lado perceptivo” e o “lado motor” do comportamento se comunicam. II I
Se se faz um estímulo luminoso crescer pouco a pouco a partir de um valor subliminar, primeiramente se experimenta uma certa disposição do corpo e, repentinamente, a sensação continua e “se propaga no domínio visual”. II I
Quando dizemos que o vermelho aumenta a amplitude de nossas reações, não se deve entendê-lo como se se tratasse ali de dois fatos distintos, uma sensação de vermelho e reações motoras — é preciso compreender que o vermelho, por sua textura que nosso olhar segue e esposa, já é a amplificação de nosso ser motor. II I
O sujeito da sensação não é nem um pensador que nota uma qualidade, nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela; é uma potência que co-nasce em um certo meio de existência ou se sincroniza com ele. II I
Da mesma maneira, dou ouvidos ou olho à espera de uma sensação e, repentinamente, o sensível toma meu ouvido ou meu olhar, eu entrego uma parte de meu corpo ou mesmo meu corpo inteiro a essa maneira de vibrar e de preencher o espaço que é o azul ou o vermelho. II I
Assim como o sacramento não apenas simboliza uma operação da Graça sob espécies sensíveis, mas é ainda a presença real de Deus, faz com que ela resida em um fragmento de espaço e a comunica àqueles que comem o pão consagrado, se eles estão interiormente preparados, do mesmo modo o sensível não apenas tem uma significação motora e vital, mas é uma certa maneira de ser no mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que nosso corpo retoma e assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma comunhão. II I
Minha sensação e minha percepção, diz ele, só podem ser designáveis e, portanto, só podem ser para mim se forem sensação ou percepção de algo, por exemplo sensação de azul ou de vermelho, percepção da mesa ou da cadeira. II I
É isso que fazemos quando definimos a sensação como coexistência ou como comunhão. II I
A sensação de azul não é o conhecimento ou a posição de um certo quale identificável através de todas as experiências que tenho dele, assim como o círculo do geômetra é o mesmo em Paris e em Tóquio. II I
A sensação é intencional porque encontro no sensível a proposição de um certo ritmo de existência — abdução ou adução — e porque, dando sequência a essa proposição, introduzindo-me na forma de existência que assim me é sugerida, reporto-me a um ser exterior, seja para abrir-me seja para fechar-me a ele. II I
Aquele que sente e o sensível não estão um diante do outro como dois termos exteriores, e a sensação não é uma invasão do sensível naquele que sente. II I
É meu olhar que subtende a cor, é o movimento de minha mão que subtende a forma do objeto, ou antes meu olhar acopla-se à cor, minha mão acopla-se ao duro e ao mole, e nessa troca entre o sujeito da sensação e o sensível não se pode dizer que um aja e que o outro padeça, que um dê sentido ao outro. II I
E, quanto ao sujeito da sensação, ele não precisa ser um puro nada sem nenhum peso terrestre. II I
Tomado exatamente tal como o vejo, ele é um momento de minha história individual e, como a sensação é uma reconstituição, ela supõe em mim os sedimentos de uma constituição prévia, eu sou, enquanto sujeito que sente, inteiramente pleno de poderes naturais dos quais sou o primeiro a me espantar. II I
Toda sensação comporta um germe de sonho ou de despersonalização, como nós o experimentamos por essa espécie de estupor em que ela nos coloca quando vivemos verdadeiramente em seu plano. II I
Sem dúvida, o conhecimento me ensina que a sensação não aconteceria sem uma adaptação de meu corpo, por exemplo que não haveria contato determinado sem um movimento de minha mão. II I
Mas essa atividade se desenrola na periferia de meu ser, não tenho mais consciência de ser o verdadeiro sujeito de minha sensação do que de meu nascimento ou de minha morte. II I
Cada sensação, sendo rigorosamente a primeira, a última e a única de sua espécie, é um nascimento e uma morte. II I
O sujeito que tem a sua experiência começa e termina com ela, e, como ele não pode preceder-se nem sobreviver a si, a sensação necessariamente se manifesta a si mesma em um meio de generalidade, ela provém de aquém de mim mesmo, ela depende de uma sensibilidade que a precedeu e que sobreviverá a ela, assim como meu nascimento e minha morte pertencem a uma natalidade e a uma mortalidade anônimas. II I
Pela sensação, eu apreendo, à margem de minha vida pessoal e de meus atos próprios, uma vida de consciência dada da qual eles emergem, a vida de meus olhos, de minhas mãos, de meus ouvidos, que são tantos Eus naturais. II I
Toda vez que experimento uma sensação, sinto que ela diz respeito não ao meu ser próprio, aquele do qual sou responsável e do qual decido, mas a um outro eu que já tomou partido pelo mundo, que já se abriu a alguns de seus aspectos e sincronizou-se a eles. II I
Entre minha sensação e mim há sempre a espessura de um saber originário que impede minha experiência de ser clara para si mesma. II I
Experimento a sensação como modalidade de uma existência geral, já consagrada a um mundo físico, e que crepita através de mim sem que eu seja seu autor. II I
2° A sensação só pode ser anônima porque é parcial. II I
Podemos resumir essas duas ideias dizendo que toda sensação pertence a um certo campo. II I
Se uma sensação não fosse sensação de algo, ela seria um nada de sensação, e “coisas” no sentido mais geral da palavra, por exemplo qualidades definidas, só se esboçam na massa confusa das impressões se esta é posta em perspectiva e coordenada pelo espaço. II I
E, com o auxílio dessa ideia da consciência e dessa ideia do objeto, mostra-se facilmente que toda qualidade sensível só é plenamente objeto no contexto das relações de universo, e que a sensação só pode ser sob a condição de existir para um Eu central e único. II I
Toda sensação é espacial, nós aderimos a essa tese não porque a qualidade enquanto objeto só pode ser pensada no espaço, mas porque, enquanto contato primordial com o ser, enquanto retomada, pelo sujeito que sente, de uma forma de existência indicada pelo sensível, enquanto coexistência entre aquele que sente e o sensível, ela própria é constitutiva de um meio de experiência, quer dizer, de um espaço. II I
Dizemos a priori que nenhuma sensação é pontual, que toda sensorialidade supõe um certo campo, logo, coexistências, e concluímos daí, contra Lachelier, que o cego tem a experiência de um espaço. II I
A sensação, tal como a experiência a entrega a nós, não é mais uma matéria indiferente e um momento abstrato, mas uma de nossas superfícies de contato com o ser, uma estrutura de consciência, e, em lugar de um espaço único, condição universal de todas as qualidades, nós temos com cada uma delas uma maneira particular de ser no espaço e, de alguma maneira, de fazer espaço. II I
A hipótese de constância, que para cada estímulo atribui uma e apenas uma sensação, é tanto menos verificada quanto mais nos aproximamos da percepção natural. “ II I
Procura-se então explicá-lo sem tocar no conceito de sensação; será preciso, por exemplo, supor que as excitações ordinariamente circunscritas a uma região do cérebro — zona ótica ou zona auditiva — tornam-se capazes de intervir fora desses limites, e que assim à qualidade específica acha-se associada uma qualidade não-específica. II I
Quer tenha ou não ao seu favor argumentos de fisiologia cerebral, essa explicação não dá conta da experiência sinestésica, que se torna assim uma nova ocasião de colocar em questão o conceito de sensação e o pensamento objetivo. II I
Para o intelectualismo, refletir é afastar ou objetivar a sensação e fazer aparecer, diante dela, um sujeito vazio que possa percorrer este diverso e para quem ele possa existir. II I
Aquilo que chamamos de sensação é apenas a mais simples das percepções e, enquanto modalidade da existência, ela não pode, assim como nenhuma percepção, separar-se de um fundo que, enfim, é o mundo. II I
De cada ponto do campo primordial partem intenções, vazias e determinadas; efetuando essas intenções, a análise chegará ao objeto de ciência, à sensação enquanto fenômeno privado, e ao sujeito puro que põe um e outro. II I
Da mesma maneira, quando se fala de uma sensação de movimento, ou de uma consciência sui generis do movimento ou, como a teoria da forma, de um movimento global, de um fenômeno ç em que nenhum móbil, nenhuma posição particular do móbil seriam dados, estas são apenas palavras se não se diz como “aquilo que é dado nessa sensação ou neste fenômeno, ou aquilo que é apreendido através deles, se atesta (dokumentiert) imediatamente como movimento”. II II
A ilusão não o será, a certeza deverá estender-se da visão ou da sensação como pensamentos à percepção como constitutiva de um objeto. II II
Não é verdade que, se me atenho àquilo que verdadeiramente vejo, eu nunca me engane, e que pelo menos a sensação seja indubitável. II II
Toda sensação, inserida em uma configuração confusa ou clara, já é pregnante de um sentido, e não há nenhum dado sensível que permaneça o mesmo quando passo da pedra ilusória à mancha de sol verdadeira. II II
A evidência da sensação acarretaria a evidência da percepção e tornaria a ilusão impossível. II II
O estilo dessas modulações define tantos modos de aparição do fenômeno tátil, que não são redutíveis uns aos outros e não podem ser deduzidos de uma sensação tátil elementar. II III
É por uma terceira redução que se passa da coisa visual ao aspecto perspectivo: observo que todas as faces do dado não podem cair sob meus olhos, que entre elas algumas sofrem deformações: Por uma última redução, chego enfim à sensação, que não é mais uma propriedade da coisa, nem mesmo do aspecto perspectivo, mas uma modificação de meu corpo. II III
Quando Descartes nos diz que a sensação, reduzida a si mesma, é sempre verdadeira, e que o erro se introduz pela interpretação transcendente que o juízo lhe dá, ele faz ali uma distinção ilusória: para mim não é menos difícil saber se senti algo do que saber se ali existe algo, e o histérico sente e não conhece aquilo que sente, assim como percebe objetos exteriores sem se dar conta dessa percepção. III I
Ao contrário, quando estou seguro de ter sentido, a certeza de uma coisa exterior está envolvida na própria maneira pela qual a sensação se articula e se desenvolve diante de mim: trata-se de uma dor da perna, ou é uma sensação de vermelho e, por exemplo, do vermelho opaco em um único plano ou, ao contrário, de uma atmosfera avermelhada com três dimensões. III I
A consciência que tenho de ver ou de sentir não é a notação passiva de um acontecimento psíquico fechado em si mesmo, e que me deixaria incerto no que concerne à realidade da coisa vista ou sentida; ela também não é o desdobramento de uma potência constituinte que conteria eminentemente e eternamente em si mesma toda visão e sensação possíveis, e que encontraria o objeto sem precisar abandonar-se, ela é a própria efetuação da visão. III I
O que descubro e reconheço pelo Cogito não é a imanência psicológica, a inerência de todos os fenômenos a “estados de consciência privados”, o contato cego da sensação consigo mesma — não é nem mesmo a imanência transcendental, a pertença de todos os fenômenos a uma consciência constituinte, a posse do pensamento claro por si mesmo —, é o movimento profundo de transcendência que é meu próprio ser, o contato simultâneo com meu ser e com o ser do mundo. III I
Não existe hyle, nenhuma sensação sem comunicação com as outras sensações ou com as sensações dos outros, e por essa razão mesma não existe morphe, nenhuma apreensão ou apercepção que esteja encarregada de dar um sentido a uma matéria insignificante e de assegurar a unidade a priori de minha experiência e da experiência intersubjetiva. III I
