Merleau-Ponty (FP) – corpo é ...
(MPFP)
O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles. Intro I
Mas, no momento mesmo em que o mundo lhe mascara sua deficiência, ele não pode deixar de revelá-la: pois se é verdade que tenho consciência de meu corpo através do mundo, que ele é, no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a volta em torno deles, e neste sentido tenho consciência do mundo por meio de meu corpo. Intro I
O que nos permite centrar nossa existência é também o que nos impede de centrá-la absolutamente, e o anonimato de nosso corpo é inseparavelmente liberdade e servidão. Intro I
Quando digo que meu corpo é sempre percebido por mim, essas palavras não devem então ser entendidas em um sentido simplesmente estatístico e deve haver na apresentação do corpo próprio algo que torne impensável sua ausência ou mesmo sua variação. Intro II
Dizia-se ainda que o corpo é um objeto afetivo, enquanto as coisas exteriores me são apenas representadas. Intro II
A incompletude de meu corpo, sua apresentação marginal, sua ambiguidade enquanto corpo tocante e corpo tocado não podiam então ser traços de estrutura do próprio corpo; não afetavam sua ideia, tornavam-se os “caracteres distintivos” dos conteúdos de consciência que compõem nossa representação do corpo: esses conteúdos são constantes, afetivos e bizarramente emparelhados em “sensações duplas”, mas, com exceção disso, a representação do corpo é uma representação como as outras e, correlativamente, o corpo é um objeto como os outros. Intro II
O contorno de meu corpo é uma fronteira que as relações de espaço ordinárias não transpõem. Intro III
Não basta dizer que meu corpo é uma forma, quer dizer, um fenômeno no qual o todo é anterior às partes. Intro III
No movimento concreto, o doente não tem nem consciência tética do estímulo, nem consciência tética da reação: simplesmente ele é seu corpo e seu corpo é a potência de um certo mundo. Intro III
Na medida em que o corpo é definido pela existência em si, ele funciona uniformemente como um mecanismo; na medida em que a alma é definida pela pura existência para si, ela só conhece objetos desdobrados diante de si. Intro III
Um movimento é aprendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu “mundo”, e mover seu corpo é visar as coisas através dele, é deixá-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação. Intro III
Compreender é experimentar o acordo entre aquilo que visamos e aquilo que é dado, entre a intenção e a efetuação — e o corpo é nosso ancoradouro em um mundo. Intro III
Ora, o corpo é eminentemente um espaço expressivo. Intro III
O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Intro III
Meu corpo é esse núcleo significativo que se comporta como uma função geral e que todavia existe e é acessível à doença. Intro III
A espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a maneira pela qual ele se realiza como corpo. Intro IV
O corpo é, para retomar a expressão de Leibniz, a “lei eficaz” de suas mudanças. Intro IV
É nesse sentido que nosso corpo é comparável à obra de arte. Intro IV
O papel do corpo é assegurar essa metamorfose. Ele transforma as ideias em coisas, minha mímica do sono em sono efetivo. Se o corpo pode simbolizar a existência, é porque a realiza e porque é sua atualidade. Ele secunda seu duplo movimento de sístole e de diástole. Por um lado, com efeito, ele é a possibilidade para minha existência de demitir-se de si mesma, de fazer-se anônima e passiva, de fixar-se em uma escolástica. Intro V
Mas, justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. Intro V
Pode-se dizer que o corpo é “a forma escondida do ser próprio” ou, reciprocamente, que a existência pessoal é a retomada e a manifestação de um dado ser em situação. Intro V
Nem o corpo nem a existência podem passar pelo original do ser humano, já que cada um pressupõe o outro e já que o corpo é a existência imobilizada ou generalizada, e a existência uma encarnação perpétua. Intro V
Dizer que tenho um corpo é então uma maneira de dizer que posso ser visto como um objeto e que procuro ser visto como sujeito, que o outro pode ser meu senhor ou meu escravo, de forma que o pudor e o despudor exprimem a dialética da pluralidade das consciências e que eles têm sim uma significação metafísica. Intro V
Responder-se-á talvez que a organização de nosso corpo é contingente, que se pode “conceber um homem sem mãos, pés, cabeça”, e com mais razão ainda um homem sem sexo que se reproduziria por brotamento ou por mergulhia. Intro V
Mas justamente por que nós o fazemos? Porque nosso corpo é para nós o espelho de nosso ser, senão porque ele é um eu natural, uma corrente de existência dada, de forma que nunca sabemos se as forças que nos dirigem são as suas ou as nossas — ou antes elas nunca são inteiramente nem suas nem nossas. Intro V
O uso que um homem fará de seu corpo é transcendente em relação a esse corpo enquanto ser simplesmente biológico. Intro VI
O que atesta sua inerência ao corpo é o fato de que as afecções da linguagem não podem ser reduzidas à unidade e de que o distúrbio primário diz respeito ora ao corpo da palavra, o instrumento material da expressão verbal, ora à fisionomia da palavra, a intenção verbal, essa espécie de plano de conjunto a partir do qual conseguimos dizer ou escrever exatamente uma palavra, ora ao sentido imediato da palavra, aquilo que os autores alemães chamam de conceito verbal, ora enfim à estrutura da experiência inteira e não apenas à experiência linguística, como no caso da afasia amnésica que analisamos mais acima. Intro VI
Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Intro VI
Mas, se nossa união com o corpo é substancial, como poderíamos sentir em nós mesmos uma alma pura e dali ter acesso a um Espírito absoluto? Antes de colocar essa questão, vejamos tudo o que está implicado na redescoberta do corpo próprio. Intro VI
Mas, retomando assim o contato com o corpo e com o mundo, é também a nós mesmos que iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção. II VI
A visão dos sons ou a audição das cores se realizam como se realiza a unidade do olhar através dos dois olhos: enquanto meu corpo é não uma soma de órgãos justapostos, mas um sistema sinérgico do qual todas as funções são retomadas e ligadas no movimento geral do ser no mundo, enquanto ele é a figura imobilizada da existência. II I
Junto ao espectador, os gestos e as falas não são subsumidos a uma significação ideal, mas a fala retoma o gesto, e o gesto retoma a fala, eles se comunicam através de meu corpo, assim como os aspectos sensoriais de meu corpo, eles são imediatamente simbólicos um do outro, porque meu corpo é justamente um sistema acabado de equivalências e de transposições intersensoriais. II I
Meu corpo é o lugar, ou antes a própria atualidade do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung). II I
Meu corpo é a textura comum de todos os objetos e é, pelo menos em relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha “compreensão”. II I
Mas, se posso remontar da grandeza aparente à sua significação, é sob a condição de saber que existe um mundo de objetos indeformáveis, que, diante desse mundo, meu corpo é como um espelho e que, assim como a imagem do espelho, aquela que se forma no corpo-tela é exatamente proporcional ao intervalo que o separa do objeto. II II
Se aproximo de mim o objeto ou se o faço girar em meus dedos para “vê-lo melhor”, é porque para mim cada atitude de meu corpo é de um só golpe potência de um certo espetáculo, porque para mim cada espetáculo é aquilo que é em uma certa situação cinestésica; em outros termos, porque diante das coisas meu corpo está permanentemente em posição para percebê-las e, inversamente, porque as aparências são sempre envolvidas por mim em uma certa atitude corporal. II III
Nossa instalação em um certo ambiente colorido, com a transposição de todas as relações de cores que ela acarreta, é uma operação corporal; só posso realizá-la entrando na nova atmosfera, porque meu corpo é meu poder geral de habitar todos os ambientes do mundo, a chave de todas as transposições e de todas as equivalências que o mantêm constante. II III
Assim, a coisa é o correlativo de meu corpo e, mais geralmente, de minha existência, da qual meu corpo é apenas a estrutura estabilizada, ela se constitui no poder de meu corpo sobre ela, ela não é em primeiro lugar uma significação para o entendimento, mas uma estrutura acessível à inspeção do corpo, e, se queremos descrever o real tal como ele nos aparece na experiência perceptiva, nós o encontramos carregado de predicados antropológicos. II III
Ter um corpo é possuir uma montagem universal, uma típica de todos os desenvolvimentos perceptivos e de todas as correspondências intersensoriais para além do segmento do mundo que efetivamente percebemos. II III
Eu tenho o mundo como indivíduo inacabado através de meu corpo enquanto potência desse mundo, e tenho a posição dos objetos por aquela de meu corpo ou, inversamente, a posição de meu corpo por aquela dos objetos, não em uma implicação lógica e como se determina uma grandeza desconhecida por suas relações objetivas com grandezas dadas, mas em uma implicação real, e porque meu corpo é movimento em direção ao mundo, o mundo, ponto de apoio de meu corpo. II IV
Em torno do corpo percebido cava-se um turbilhão para onde meu corpo é atraído e como que aspirado: nessa medida, ele não é mais somente meu, ele não está presente somente a mim, ele está presente a X, a esta outra conduta que neste começa a se desenhar. II IV
Sinto meu corpo como potência de certas condutas e de um certo mundo, sou dado a mim mesmo como um certo poder sobre o mundo; ora, é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo. II IV
Não é apenas a noção do corpo que, através da noção do presente, é necessariamente ligada à noção do para si, mas a existência efetiva de meu corpo é indispensável à existência de minha “consciência”. III II
