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Michel Henry (Marx) – prática e teoria

Henry, Michel. Marx. vol. I. Una filosofía de la realidad. - 1a ed. - Buenos Aires : Ediciones La Cebra, 2011.

A determinação da realidade constitui a obsessão central do pensamento de Marx, que, já no manuscrito de 1842, condena o hegelianismo e a essência política por serem ontologicamente estranhos à realidade efetiva da sociedade civil; a oposição monotônica entre Estado e sociedade civil revela-se decisiva como a oposição entre a irrealidade imaginária do cidadão e a realidade concreta do indivíduo vivente (o comerciante, o jornaleiro), sendo a sofística do Estado político a confusão ontológica entre essas duas esferas.

A realidade é inicialmente pensada sob o título de prática (Praxis), um conceito tomado de Feuerbach que designa o real em geral por oposição à teoria, entendida não como sistema lógico, mas como o domínio da representação e da irrealidade; desde a tese doutoral sobre Demócrito e Epicuro, Marx questiona a capacidade da representação de definir a realidade, argumentando que a existência de um objeto na imaginação (como o Apolo de Delfos ou cem oficinas imaginadas) não lhe confere realidade ontológica, ainda que exerça efeitos reais na vida dos homens.

A crítica de Feuerbach à religião fornece o modelo para a oposição entre realidade e representação: a religião é o sonho do espírito humano, o reino onde as coisas são vistas à luz da imaginação e não da necessidade; Feuerbach inverte a valorização idealista, afirmando que o seu tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original e a representação à realidade, definindo a tarefa da crítica como a transposição do objeto da representação em objeto da realidade, ou seja, a substituição da teologia pela antropologia.

A distinção feuerbachiana entre protestantismo e catolicismo ilustra a oposição entre prática e teoria: o protestantismo é a negação prática do cristianismo (ao autorizar a ação natural na sociedade civil) mas a sua afirmação teórica (ao manter a fé num Deus transcendente), constituindo uma contradição não resolvida; o catolicismo, por sua vez, nega a moral sobrenatural apenas de facto e não de jure, mantendo a tensão; Marx transpõe essa análise para a crítica política, vendo na emancipação política apenas uma negação teórica da religião que deixa intacta a sua base prática na sociedade civil.

A terminologia de Marx em 1844-1845, fortemente influenciada por Feuerbach, opõe sistematicamente teoria e prática, identificando a teoria com a atividade espiritual, o pensamento, o saber, a cabeça e o sujeito, e a prática com o ser, a energia natural, o sentimento, o coração, o objeto e o homem; essa dicotomia reflete a tentativa de apreender a realidade como aquilo que resiste à dissolução no pensamento abstrato, mas permanece prisioneira de uma confusão fundamental sobre a natureza do real.

A resposta de Feuerbach à pergunta sobre o que é a realidade que se opõe à representação é o ser sensível; o real é o objeto dos sentidos, e verdade, realidade e sensibilidade são idênticos; essa tese fundamenta a negação da filosofia (entendida como pensamento abstrato) e a exigência de uma nova filosofia baseada na intuição sensível e não no conceito, uma filosofia que duvida de si mesma e se cria a partir do seu contrário, a natureza.

O materialismo de Feuerbach repousa sobre um paralogismo que confunde duas significações incompatíveis de sensibilidade: a significação ôntica (o ente material, a pedra, o objeto sentido) e a significação ontológica (a capacidade de sentir, a abertura ao ser, a subjetividade); ao passar de uma para a outra, Feuerbach atribui ao ente material propriedades que pertencem apenas à subjetividade (sofrimento, amor, passibilidade), resultando num materialismo que é, no fundo, uma afirmação da subjetividade sensível e afetiva.

A teoria do objeto em Feuerbach, segundo a qual o objeto de um ser revela a sua essência (o sol é o espelho da essência da planta, Deus é o espelho da essência do homem), implica que a consciência do objeto é idêntica à consciência de si; essa tese, retomada por Marx, transforma a necessidade (besoin) numa estrutura intencional onde o ser natural só é real na medida em que tem o seu objeto fora de si, ou seja, na medida em que é objetivo e passivo; contudo, essa objetividade é interpretada fenomenologicamente como a manifestação da essência do sujeito, reintroduzindo o idealismo da consciência de si no coração do naturalismo.

A crítica de Marx a Hegel nos Manuscritos de 1844 baseia-se na acusação de que Hegel reduz o ser sensível e singular ao pensamento abstrato, fazendo da natureza apenas um momento da ideia; Marx, seguindo Feuerbach, reivindica a intuição como o princípio que dá acesso à realidade verdadeira, opondo a receptividade da intuição à atividade criadora do conceito; no entanto, ao definir a realidade como objetividade e a intuição como o processo de objetivação, Marx permanece no horizonte ontológico hegeliano, onde ser é ser-objeto e a objetividade é a exteriorização da consciência.

O equívoco fundamental da crítica de Marx a Hegel em 1844 reside na crença de que Hegel quer suprimir a objetividade para superar a alienação; na verdade, para Hegel, a alienação (entendida como exteriorização) é idêntica à objetividade e à realização do espírito, e a superação da alienação não é a abolição do objeto, mas o reconhecimento de que o objeto é o próprio espírito em sua alteridade (das Andere seiner selbst); ao exigir a manutenção da objetividade como condição da realidade humana, Marx não está a opor-se a Hegel, mas a repetir a tese hegeliana de que a consciência só é real ao objetivar-se.

A verdadeira natureza da sensibilidade nos Manuscritos de 1844 revela-se idêntica à essência do pensamento: os sentidos não são apenas receptores passivos, mas “teóricos” em sua prática, afirmando-se no mundo objetivo e humanizando a natureza; a extensão do conceito de sentido para incluir os “sentidos espirituais” (vontade, amor) e a definição da apropriação do objeto como a confirmação das forças essenciais do homem demonstram que a praxis sensorial é concebida como uma atividade de objetivação estruturalmente homogênea ao pensamento hegeliano.

A redução da praxis à teoria consuma-se na identificação da atividade vital com a intuição e a contemplação: a festa óptica da contemplação celebrada por Feuerbach como a essência do homem revela que o materialismo humanista é, em última análise, um idealismo da visão, onde a realidade só é acessível na distância da representação e da objetividade; assim, os Manuscritos de 1844, longe de romperem com a filosofia especulativa, constituem a sua repetição antropológica.

A necessidade das Teses sobre Feuerbach surge da aporia interna dos manuscritos de Paris: Marx percebe que a definição da realidade como objetividade sensível (intuição) falha em captar a essência da praxis revolucionária e da atividade humana sensível (sinnliche menschliche Tätigkeit); para apreender a realidade que escapa tanto a Hegel quanto a Feuerbach, Marx deve romper com o conceito de objetividade e com a intuição teórica, buscando a origem da realidade na imanência radical da vida subjetiva, na praxis que não é objeto de contemplação, mas a própria substância da existência social.

A ruptura de 1845 não é, portanto, uma simples mudança de alianças filosóficas (de Feuerbach para Stirner ou para o materialismo histórico), mas uma revolução ontológica que rejeita a primazia da teoria (visão, representação, objetividade) em favor de uma ontologia da vida e da ação, inaugurando a verdadeira crítica da economia política e da ideologia como formas de consciência que esqueceram a sua fundação na vida prática dos indivíduos.

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