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Michel Henry (Marx) – o indivíduo

Henry, Michel. Marx. vol. I. Una filosofía de la realidad. - 1a ed. - Buenos Aires : Ediciones La Cebra, 2011.

O conceito de indivíduo em Marx, fundamental para a sua ontologia madura, foi obscurecido nos textos de juventude pela influência hegeliana e feuerbachiana, que concebiam o indivíduo apenas como uma mediação para a realização do universal (Estado ou Gênero); a crítica ao Estado político em 1843 visava não o triunfo do indivíduo egoísta, mas a denúncia da incapacidade do Estado de realizar a universalidade concreta, deixando subsistir a anarquia da sociedade civil onde os “direitos do homem” são apenas os direitos do indivíduo separado da comunidade e limitado a si mesmo.

O humanismo de 1844, ao postular que o indivíduo é um ser genérico determinado e mortal, subordina a realidade individual à unidade ideal da espécie, repetindo o esquema feuerbachiano onde a humanidade é forte e o indivíduo é fraco; contudo, a própria análise marxiana da sociedade civil como reino da necessidade e do interesse privado revela a irrealidade desse gênero hipostasiado, mostrando que a única realidade efetiva são os indivíduos em luta e as classes que eles formam.

A crítica à “lógica do interesse pessoal” (como no caso do roubo de lenha) não é uma condenação moral da individualidade, mas a exposição da sofística pela qual o interesse privado de uma classe (proprietários de florestas) se disfarça de interesse geral do Estado; ao desmascarar essa manobra, Marx inverte a relação entre universal e particular: o universal não existe em si mesmo, mas apenas na sua referência aos indivíduos que o constituem, sendo o “Homem” uma abstração vazia se separada dos indivíduos reais que sofrem e agem.

A inversão do conceito de “Homem” ocorre quando Marx percebe que a alienação não é a perda de uma essência genérica abstrata, mas a expropriação real do produto do trabalho de um indivíduo por outro indivíduo; a dominação não é exercida pelo objeto ou pela “essência estranha”, mas pelo não-produtor sobre o produtor, o que desloca o eixo da análise da relação homem-gênero para a relação social entre indivíduos concretos.

A crítica ao conceito de “Homem” em A Ideologia Alemã (1845) marca o abandono definitivo da antropologia filosófica: “Homem” é apenas o nome para o conceito, a ideia, uma representação filosófica que substitui os indivíduos reais; a história não é o processo de auto-alienação do Homem, mas a sucessão de gerações de indivíduos que produzem suas condições de existência; consequentemente, o desenvolvimento da humanidade só pode ser assegurado através do desenvolvimento (ainda que contraditório e desigual) dos indivíduos particulares.

A crítica a Max Stirner não é uma rejeição do indivíduo em favor do coletivo, mas a denúncia de um individualismo que permanece prisioneiro da ideologia; Stirner define o indivíduo pela sua consciência e pela sua vontade (“eu sou o que eu quero”, “o mundo é minha representação”), substituindo o indivíduo real e suas condições materiais de vida por uma categoria construída (“O Único”); para Marx, o indivíduo não se cria do nada nem se define pela sua representação de si, mas é o resultado de um processo vital prático.

A vontade individual não é um princípio absoluto de criação social, mas uma expressão das condições de vida; a “vontade geral” ou a lei não emana de uma vontade pura soberana, mas reflete os interesses comuns de uma classe dominante, fundados nas suas condições materiais de existência; assim, a crítica da vontade não elimina o indivíduo, mas reconduzi-o à sua base real na práxis, mostrando que a impotência da vontade idealista reside na sua separação dessa base.

A tentativa contemporânea (como a de Jacques Rancière ou do estruturalismo) de eliminar o “sujeito” da análise marxista, reduzindo o agente da produção a um “suporte de estruturas” ou a uma “consciência mistificada”, constitui um regresso à ideologia; Marx não dissolve o indivíduo no sistema, mas explica o sistema a partir da atividade alienada dos indivíduos; a ilusão do capitalista sobre a origem do lucro não suprime a realidade da sua ação exploradora, nem a realidade do sofrimento e do trabalho do operário que produz a mais-valia.

A crítica às “robinsonadas” (o indivíduo isolado do século XVIII) não nega a realidade do indivíduo, mas a sua representação como átomo social a-histórico; o indivíduo é sempre um ser social, mas isso não significa que ele seja uma criação da sociedade; pelo contrário, a sociedade é que é o produto da ação recíproca dos indivíduos; a ideia de “indivíduo” como ente separado surge historicamente com a dissolução das comunidades feudais e o advento da concorrência burguesa, mas essa representação pressupõe a existência prévia dos indivíduos reais que a produzem.

A distinção ontológica radical entre individualidade e propriedade é estabelecida na crítica a Destutt de Tracy: a individualidade é aquilo de que o eu não pode separar-se (o corpo, as faculdades, a vida), constituindo a imanência absoluta da subjetividade; a propriedade privada, ao contrário, é aquilo de que o eu pode desfazer-se, sendo uma relação externa e alienável; identificar a individualidade com a propriedade burguesa é um absurdo lógico e uma infâmia moral, pois implicaria que o proletário, desprovido de propriedade, seria desprovido de individualidade.

O dinheiro é a forma suprema de alienação da individualidade porque confere ao indivíduo, de fora, poderes e qualidades que contradizem o seu ser real (torna o feio belo, o covarde valente); essa inversão só é possível porque o dinheiro é uma potência social objetivada que se separa dos indivíduos e os domina, mas essa dominação pressupõe a realidade ontológica irredutível da vida individual que sofre essa inversão e que, em última instância, pode revoltar-se contra ela.

A defesa da individualidade em Marx não é um liberalismo, mas uma exigência ontológica e política de que as condições sociais permitam o desenvolvimento omnilateral das potencialidades de cada indivíduo; o comunismo não é a negação do indivíduo em favor da comunidade, mas a “associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”, possibilitando que a riqueza subjetiva da vida substitua a riqueza abstrata da mercadoria.

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