machado:valor-poetico

Valor poético

Antonio Machado, Machado2002

Um certo tipo de poesia vive dos superlativos. O poeta pretende elevar o seu coração para fora do tempo, para o topos uranios das ideias. Esta poesia, por vezes acompanhada da emoção particular produzida pelos superlativos, pode ser verdadeiramente poética, desde que o poeta não atinja o seu objetivo. O que significa que o objetivo é, no mínimo, anti-poético. Se lermos Kant — ler Kant requer menos fósforo do que decifrar sutis disparates e desvendar conceitos disparatados — deparamo-nos com a famosa parábola da pomba que, sentindo a resistência do vento contra as suas asas, imagina que pode voar melhor no vácuo. Com esta imagem, Kant apresenta um dos argumentos mais decisivos contra a metafísica dogmática, que pretende elevar-se ao absoluto, a razão discursiva acreditando que pode elevar-se acima do vazio das intuições. As imagens dos grandes filósofos, embora tenham uma função didática, têm um inegável valor poético, e um dia destes chegaremos a esse ponto. Em todo o caso, parece-me que existe uma pomba lírica, cujo hábito é eliminar o tempo para ascender ao eterno, e que, tal como a pomba kantiana, ignora a lei do seu próprio voo.

/home/mccastro/public_html/sofia/data/pages/machado/valor-poetico.txt · Last modified: by 127.0.0.1