Um homem, os homens; o Homem
Juan David García Bacca, Bacca1967
1. — Todos nós, sem exceção, acreditamos ser indivíduos. Cada um de nós crê ser o exemplar único de uma única edição possível. O que se chama de duplicata, triplicata…, e o que se chama de duplo perfeito, são, em primeiro lugar, procedimentos de impressão, e em segundo, truques de romancista.
Que por vezes se fale de “gêmeos” nos perturba um pouco; mas essa palavrinha, “eu”, tem, acreditamos, a virtude mágica — de uma magia nominal — de tornar impossível a gemelidade. “Eu” sou o único que o é. Isso, sim, eu sei; isso, sim, eu sou.
Assim será enquanto eu não for até o ponto de dizê-lo e pensá-lo. Se eu digo “eu”, todos e cada um dizem exatamente o mesmo. Essa palavrinha passou ao plano do universal, já não me designa. E se eu penso no “eu”, nesse eu único, não multiplicável, tal conceito de “eu” é um universal, no mínimo de mesma extensão que o de “homem”.
Descartes não pôde dizer em voz alta estas proposições: “penso”, “existo”, pois são tão universais quanto “todo número par é divisível por dois”, ou quanto “toda circunferência é uma curva plana, fechada e dotada de um centro”. Descartes se esforçava para pensar e dizer: “eu, René Descartes, existo, senhor Du Perron, sou aquele que está pensando e que pensa realmente, seja o que penso real ou não, seja o que digo verdadeiro ou falso, e haja ou não neste mundo alguém mais que pense em si e diga eu”.
Mas, como nos ensina o provérbio, “Palavra e pedra lançadas / não podem ser recuperadas”. Se quero pensar e falar de mim de verdade, seria preciso que ninguém mais pudesse usar as palavras “eu” e “mim”, como se houvesse uma lei que proibisse de modo eficaz e automático que outro homem usasse meu nome e sobrenome. Essa lei não existe. Nenhuma palavra lançada por uma mão singular pode voltar a ela; torna-se coisa universal, atmosfera comum; não há efeito de bumerangue.
Só nos enrolando, nos encolhendo desesperadamente no fundo de um broto, de um casulo, e não soltando nem palavra nem pensamento, é que talvez consigamos, um por um — sem poder nem querer saber nada uns dos outros — dar um sentido imediato, secreto — silencioso em palavra e pensamento — a isto: ser eu.
O indivíduo é inefável, diziam os clássicos gregos e medievais; nem se pode falar dele, nem ele pode falar de si. Quando Jeová diz a Moisés “Eu sou Aquele que é”, aconteceu-lhe o mesmo que ao poeta: “Foi a alma que falou? Não, já não era a alma que falava”. Foi Deus que falou e disse “eu”? Já não era Deus que falava. Ele disse o que todos nós dizemos, que não somos deuses: “Eu sou Aquele que é”. E se, em nossa boa vontade, insistimos em tornar verdadeira a palavra de Jeová segundo a qual “Ele, e só Ele, é Aquele que é”, nós não somos o que somos: somos o que nos fizeram ser e o que continuam a nos fazer ser; Jeová, nos dirá Descartes, qualquer um pode ser — e ele mesmo para começar — que perceba que “penso” implica imediatamente, sem intermediário nem mediação, que “existo”, que “sou aquele que é”. Jeová teria feito melhor em calar-se; o mistério, o silêncio, o segredo são pressupostos da existência de um eu; condições necessárias, mas nem suficientes nem positivas, para que se seja eu, único desde a origem.
Plotino entendeu melhor o problema, ou seja, a impossibilidade de um Eu pensar e falar. Deus é o Solitário, o Silencioso. Como bom semita, queria tratar Deus de tu a ti, de eu a mim; e como bom grego — tanto heleno quanto helenístico — pretendeu que Deus lhe falasse por meio de um logos ou com palavras, expressões racionais de uma razão; como místico que era, teve de tentar falar com Deus e conseguir que Ele lhe falasse “em grego”. O encontro, unilateralmente forçado, terminou “monos monoi”: um silencioso, um solitário, Plotino, diante de “O Silencioso e O Solitário”, Deus. O que pode acontecer, mesmo ao mais tagarela, ao mais curioso, ao mais importuno, diante de “O Silencioso e O Solitário”, senão, depois de um instante, ficar ele também silencioso e solitário?
“Quem não fala ao homem não fala a ninguém.” A ninguém, pois tal é O Silencioso, O Solitário, O Misterioso.
Vamos direto ao ponto: o que se afirma que Deus nos diz é o eco humano do que nós, homens, dizemos. E, como todo eco, é uma repetição distante, confusa, posterior, externa, inicialmente irreconhecível como nossa, prontamente reconhecida como tal — eco de nosso modo de vida, de pensamentos, de desejos, de virtudes e vícios sutis —, ao mesmo tempo tão independente e dependente de nós quanto nossa voz e o eco (dela).
É que o homem não tem o hábito de começar pelo começo, a saber, que um homem fala a outro homem: que nós falemos. Quem não fala ao homem — por uma espécie de sequela do fato de ter falado a um homem — não só não fala a ninguém, mas não fala de nada, nem mesmo de si mesmo. Do que é seu, outro lhe fala; outro tão “outro” que, logo, o homem não percebe que
“o cego sonhava que enxergava, sonhava o que desejava”.
Sonhamos, mudos, que Deus, o Outro, nos fala; sonhamos o que desejamos: que os homens nos falem, que nós falemos entre nós, em vez de brigar, nos agredir, nos acusar, gritar uns com os outros, nos matar ou nos gerar.
Juan de Mairena diz de Abel Martín:
“Pensando que não enxergava porque Deus não o olhava, Abel disse ao expirar: o que acontecia terminou.”
Isso lhe ocorreu porque não sabia (e não queria saber) que “quem não vê um homem não vê o homem, e quem não vê o homem não vê ninguém”. Ver é nos ver; viver é nos viver; falar, nos falar; pensar, nos compreender. Fora do nós, não vemos, nem vivemos, nem falamos, nem pensamos. Foi disso que Abel Martín morreu, da ausência do Nós, por ter se obstinado e empenhado em ser eu — eu vejo, eu vivo, eu sou…
“Nessa noite fria, Martín conheceu a solidão; pensava que Deus não o via e caminhava em seu deserto mudo.”
Por que O Solitário, O Misterioso, O Silencioso o teria olhado?
“Pareceu-me que adentrava um deserto imenso, e que não tem fim”; assim fala São João da Cruz, descrevendo com palavras humanas sua experiência mística: conhecer o êxtase ou sair de si de sua humanidade; do comércio de um homem, dos homens e do Homem. Deserto que lhe tornou de um sabor extremo, certamente, graças a essa virtude de “se sentir elevado acima de toda criatura temporal”. Sentiu-se não-homem; não falou a um homem, nem ao homem; não falou a ninguém; e “o imenso Deserto” não lhe disse nada. Nada de nada. Não havia ali Ninguém, Ninguém.
O que o Frei João da Cruz disse depois não passou de “escolasticismos” medíocres e enfadonhos: o triste e cansativo comentário de estrofes sublimes por sua música verbal requintada, posta em palavras deliciosamente vagas quanto aos conceitos.
Abel Martín, nosso Antonio Machado, conheceu a tentação da ferocidade ibérica contra o homem próximo ou próximo. Quem se obstina e se empenha em ser eu, em ser único, não pode suportar ser um homem entre outros, um de Nós, nem que o tratem como um homem entre outros, ou como um cidadão entre tantos; menos ainda pode suportar a instauração desse regime humano que é a democracia, onde cada um deve ser o que é como um homem entre outros e como qualquer um dos membros do Homem. Transformar esse “dever ser” em “ser isso”, eis a norma substantiva e o único e essencial artigo da democracia.
“Ontem sonhei que via Deus e que a Deus falava; e sonhei que Ele me ouvia… depois sonhei que sonhava.”
Isso é o que acontecerá a quem fala ao homem sem antes ter falado a um homem — sem tê-lo visto, ouvido; e, pior ainda, a quem pretenda falar a esse não-homem que é Deus. Esses diálogos não passam de diálogos de sonho; na realidade, solilóquios.
