Ontologia reflexiva e filosofia da esperança
Excertos de “Pela Filosofia”. Homenagem a Tarcísio Meirelles Padilha“. Pallas, 1984. Newton Sucupira, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Fundação Getúlio Vargas
Não foi por simples motivação acadêmica, mas em virtude de íntima afinidade com a ontologia reflexiva e a atitude espiritual de Louis Lavelle que Tarcísio Padilha escolheu a filosofia desse eminente pensador francês como tema de sua tese de cátedra em 1955. Se, em rigor, não se poderá dizer que Padilha tenha sido discípulo de Lavelle, não é menos certo que, ao iniciar sua aventura filosófica, ele encontra no autor da Dialectique du monde sensible o maître à penser que o inspira em suas caminhadas nos domínios do filosofar.
Recebendo sua formação filosófica numa universidade católica, nos tempos em que nessas instituições vigorava a orientação tomista, Padilha, por seu temperamento intelectual, não se acomodava ao clima rarefeito do abstracionismo escolástico, não obstante a admiração reverenciai que sempre nutriu pelo Doutor Angélico. Por isso mesmo, voltou-se para as correntes do pensamento moderno em busca de uma filosofia que afinasse com sua vocação metafísica e com o sentido da vida espiritual concreta. E esta filosofia, ele a encontra na ontologia axiológica de Louis Lavelle.
Naquela época, início da década de 50, o filósofo da Dialética do Eterno Presente ainda exercia apreciável influência em certos setores do público cultivado, notadamente nos meios cristãos. Desde os anos 30, juntamente com René Le Senne, Lavelle liderava o movimento de ideias que, sob o nome de “Filosofia do Espírito”, procurava reagir contra o positivismo e o kantismo em sentido estreito, até então dominantes no ensino universitário oficial francês, esforçando-se para restaurar a preeminência da metafísica na filosofia. O movimento era aberto a diferentes formas de pensamento, desde que tivessem como denominador comum o primado da vida do espírito e a impossibilidade de deixar à ciência e às técnicas de direção a conduta humana. Especialmente em Lavelle, tratava-se de uma metafísica inserida numa ilustre tradição que remonta a Platão, passando por Descartes e Malebranche, e na qual a contribuição do cristianismo era decisiva. Metafísica profundamente humanista em sua inspiração, ao afirmar com ênfase o valor da existência humana capaz de se auto-constituir por uma liberdade criadora que, longe de se exercer sem norma e sem razão, se ordena segundo os valores que a atraem sem a coagir. Era natural, pois, que esta filosofia espiritualista, movendo-se nos cimos da reflexão ontológica sem negligenciar as análises concretas da existência humana, correspondesse à inquietação metafísica do jovem filósofo católico e marcasse fundamente a evolução de seu pensamento. Como ele dirá no último capítulo de sua tese, a filosofia de Lavelle, centrada no “consentimento em participar do Absoluto”, impunha-se por sua mensagem de “otimismo consciente, capaz de devolver ao atormentado homem do século XX a harmonia interior, sem a qual ele se amesquinha e rompe o elo com a Transcendência”.
Louis Lavelle, no qual, em 1938, Gabriel Marcel reconhecia ” a força e a originalidade de um dos pensamentos mais coerentes e mais profundos deste tempo“, está hoje um tanto esquecido. Diríamos que suas ideias não encontram ressonância no espírito das gerações mais novas de filósofos. Em escrito recente, Padilha deplora o silêncio que envolve o nome do pensador francês: “Causa certa perplexidade e mesmo estranheza o diminuto interesse que as obras de Louis Lavelle vêm despertando nas últimas décadas”. Em grande parte atribui esse desinteresse ao fato de que “a brutalidade, a fratura moral e espiritual ocorridas nas duas grandes guerras mundiais parece haverem concorrido para que as mensagens de cunho teístico-espiritualista passassem a ser encaradas como exercícios de otimismo ingênuo”.
Já em 1934, na introdução a seu livro La Présence Totale — síntese extremamente densa de sua metafísica e um dos poucos textos em que nos fala dos desígnios de sua obra — Louis Lavelle, antecipando as repercussões de sua filosofia em nosso tempo, escrevia o seguinte: “O livro que se vai ler exprime um ato de confiança no pensamento e na vida. Contudo, nas épocas conturbadas, os homens, em geral, não se deixam sensibilizar senão por uma filosofia que justifique seu gemido em face do presente, sua ansiedade diante do futuro, sua revolta contra o destino a que estão submetidos, sem serem capazes de o dominar. A consciência procura um gozo amargo nos estados violentos e dolorosos em que o amor próprio está ao vivo e que, pelo choque mesmo que eles imprimem ao corpo e à imaginação, nos transmitem, enfim, a ilusão de haver penetrado até a raiz mesma do real”.
Possivelmente, Lavelle tinha em mira o fascínio exercido pelas novas filosofias da existência que, em suas análises concretas da condição humana, exprimiam em sua dramaticidade a angústia do homem europeu entre as duas guerras mundiais. A filosofia lavelleana, ao contrário, se afirma como metafísica do ser que visa transcender o momento fugidio de uma situação histórica para instlar-se no “eterno presente”, no absoluto. E este aspecto constitui uma das explicações para o fato de que sua metafísica não encerra apelo, em geral, à consciência filosófica de nossa época.
Vivemos uma crise do pensamento filosófico, como bem acentuou recentemente Jeanne Hersch, entre outros filósofos. E uma das características marcantes dessa crise é o sentido exacerbado da historicidade, a tentação desesperada de tudo construir ex nihilo, perdendo, assim, sua relação ao ser, recusando procurar nele uma referência, uma unidade, uma coerência, um ponto de apoio. Se a metafísica do ser se ligava ao eterno, o homem de hoje se descobre no devir incessante. A preocupação pelos fins últimos lhe parece inteiramente negligenciável em face da urgência do que fazer hic et nunc. Daí dizer-se que perdemos o sentido do ser. Não somente do ser no sentido metafísico do termo, mas também já no sentido do imediato, do “que é”, do mundo empírico mesmo que chamamos real. Restam, apenas, as interpretações conflitivas ou convenções ligadas às diversas linguagens.
Perdido o sentido do ser, a filosofia atual se consome na crítica dos fundamentos da ciência; ou se reduz à análise linguística no esforço de eliminar os mal-entendidos e dissipar as obscuridades, e a linguagem se torna o tema central da reflexão filosófica; ou, então, se converte em instrumento teórico de uma prática política e social. E, neste caso, a filosofia renuncia à sua exigência incondicional de radicalidade crítica para transmudar-se em ideologia, discurso justificador de uma praxis. Nesse clima de pensamento, no qual se abandona a pesquisa do ser absoluto, seja por se considerar empreendimento sem sentido, seja porque, segundo pretendia Merleau-Ponty, “a consciência metafísica e moral morre em contato com o absoluto”, compreende-se que a metafísica de Lavelle apareça aos olhos de muitos espíritos contemporâneos como forma de pensamento idealista e ingênuo.
A filosofia de todos os tempos, ultrapassando os discursos parciais sobre tal ou tal aspecto do existente, tem a pretensão de interrogar sobre a significação última do homem e de seu mundo. E esta vocação de totalidade define, em sua essência, a intenção do filosofar autêntico, quaisquer que sejam os seus métodos e os seus resultados. Se a filosofia não pesquisa as respostas a questões tais como a essência e a possibilidade da verdade, o sentido da história, a significação última da existência, ela não valeria uma hora de pena, como dizia Bergson evocando Pascal. Questões metafísicas fundamentais que desafiam o homem ao longo de sua história, independentemente de uma atitude idealista, e que não podem ser sumariamente descartadas sob a alegação de pseudo-problemas, como pensam os positivistas lógicos.
A questão é de saber se a origem empírica de nosso conhecimento e as exigências concretas da ação seriam conciliáveis com a possibilidade de transcender a experiência e atingir uma verdade meta-empírica, trans-histórica e universal. Se é possível, no homem, o encontro do eterno e do temporal, do Infinito e do finito, do um e do múltiplo, da necessidade e da liberdade. Lavelle está convencido que isso é possível e que a metafísica nos permite alcançar a realidade tal como é em si, isto é, o Ser além do fenômeno, o Absoluto além do relativo.
Evidentemente seria impossível, nos limites do espaço de que dispomos, analisar, em suas mútiplas implicações, uma obra tão rica e tão complexa como a de Lavelle. Basta-nos indicar suas linhas mestras e definir suas categorias fundamentais de modo a perceber o elo que liga sua ontologia reflexiva a uma filosofia da esperança, temática da reflexão filosófica de Tarcísio Padilha em seus escritos mais recentes.
A Revue Philosophique, ao fazer o necrológio de Lavelle, ressaltou com muita justeza que um dos traços característicos de seu pensamento é a maneira pela qual o autor de De l'Être renovou a metafísica na França, recuperando uma tradição que parecia quase perdida. Tradição clássica que se quer voltada para a realidade concreta, mas que vê o concreto não no particular emo momento atual, mas no universal e no ato. Inserindo-se nessa corrente de pensamento metafísico cujas raízes são platônicas (ele dirá: on philosophe selon qu'on platonise), a originalidade de Lavelle está em que busca o ser não como objeto conceptualmente apreendido, mas a partir de uma experiência da intimidade espiritual. “A metafísica ou ciência da intimidade espiritual” é o título de um de seus artigos mais importantes para bem compreendermos o seu método em metafísica. É a luz dessa experiência privilegiada que Lavelle desenvolverá sua “dialética do eterno presente”. Experiência inicial implicada em todas as outras, a saber, “a experiência da presença do Ser”, “ligação imediata do ser e do eu que funda cada um de nossos atos e lhes dá valor”. Toda sua filosofia é o vasto e profundo comentário dessa experiência originária e se articula em função dessas quatro categorias basilares: ser, ato, participação, valor. Há uma íntima e indissociável unidade entre ser, ato e valor e, por isso, sua ontologia pode ser também denominada “ontologia axiológica”, segundo a expressão utilizada por Padilha em sua tese.
A ideia do ser não se obtém por um processo de dedução. Lavelle julga com severidade a ideia hegeliana do ser, “a mais abstrata de todas e verdadeiramente uma ideia sem conteúdo que não difere da ideia do nada ou que não é senão um nada de ideia”. Para ele, ao contrário, o ser é esta plenitude do todo que ultrapassa toda ideia e não poderia ser representada e, a fortiori, não poderia ser esgotada por nenhuma ideia. O ser é, para Lavelle, uma totalidade que engloba todas as outras propriedades e, por isso mesmo, não pode derivar dos indivíduos, pois que ele é o todo no qual os indivíduos tomam lugar e do qual exprimem as determinações.
O ser é essencialmente concreto. Somente podemos apreendê-lo numa experiência da interioridade na qual a consciência que temos do nosso ser se confunde com o próprio ser. Trata-se, segundo já foi dito, da experiência da presença do ser na qual se dá também uma intuição intelectual, conforme se afirma em De l'Être. Dada essa experiência, percebe-se a importância do Cogito na apreensão do ser.
“A presença do eu a si mesmo, ou a intimidade, não se distingue de sua presença ao ser.” Isso não quer dizer que o pensamento seja anterior à existência, mas que a primeira revelação é “indubitavelmente apreendida”, como em Descartes, em seu próprio pensamento. Mas o Cogito em Lavelle não tem alcance simplesmente epistemológico. Tem sentido profundamente existencial e ontológico. Quando dizemos que o ser é presente ao eu e que este participa ao ser, enunciamos o tema único de toda meditação humana, diz Lavelle. A consciência é “interioridade ao ser”, e a interioridade da consciência (presença do espírito a si mesmo) se identifica com a experiência da participação ao ser, da participação ao todo. “A intimidade ao ser não difere da intimidade a si mesmo.” Mais ainda: a intimidade do eu a si mesmo supõe a intimidade do eu ao ser e, ao mesmo tempo, a presença total do ser. Tema bem agostiniano: Deus mais íntimo a mim do que eu mesmo, interior intimo meo et superior summo meo. A consciência, portanto, não pode bastar-se a si mesma, nem constituir o princípio ordenador do conhecimento e do real. A consciência é diálogo com o ser. A presença total do ser já é implicada na simples experiência que o eu faz de sua própria existência individual.
Como totalidade concreta, o ser é, ao mesmo tempo, universal e, por toda parte, presente em sua integridade: o ser é unívoco. “Diremos”, escreve Lavelle, “que o ser é unívoco como é universal e que, se tudo é presente nele, é necessário que seja por toda parte presente todo inteiro”. Não pode haver graus no ser, pois que se dá integramente a cada um, e que sua presença somente pode ser total. Sendo dada esta concepção da univocidade do ser, “a ideia do ser não seria a ideia de nada se não coincidisse com o próprio ser”. Em Lavelle, todas as distinções são abolidas e, assim, estaríamos em face de um realismo absoluto que poderia ser também um idealismo absoluto. Mais profundamente ainda, “não há diferença, sob a relação do ser, entre Deus e sua criação”, e isto porque o ato é a essência do ser. Essa é a grande intuição de Lavelle: cada indivíduo não existe senão por sua inscrição no todo e, então, é preciso dizer “que o todo seja presente nele graças a uma participação pessoal e ativa para a qual a consciência é necessária”.
A tese de univocidade do ser suscitou, desde logo, a suspeita de panteísmo. É que a noção do ser unívoco parece conduzir ao monismo fundamental do ser presente em toda parte. As críticas ao conceito lavelleano procediam, em geral, de filósofos tomistas apoiados na tese da analogia do ser. Mas filósofos de outras correntes levantavam também objeções ao imanentismo ontológico que, segundo eles, seria a consequência natural da univocidade ontológica. O próprio Sciacca, de resto tão simpático à filosofia de Lavelle, em sua correspondência com o pensador francês, não hesita em exprimir suas reservas sobre o conceito do ser unívoco que tenderia a comprometer a transcendência de Deus com relação à criatura. No entanto, um filósofo de orientação tomista, o professor N.J.J. Balthasar, de Louvain, não teve dúvidas em assimilar a univocidade lavelleana, admitindo sua compatibilidade com “a distinção real de seres múltiplos como verdadeiros “existir” no ser total”. Lavelle, por várias vezes, inclusive em sua correspondência com Sciacca, teve oportunidade de se explicar sobre a questão, negando terminantemente que seu conceito de univocidade conduza ao panteísmo. Por sua vez, Padilha, que, em sua tese, discutiu o problema com muita propriedade, observa que não se deve analisar a ontologia de Lavelle à luz de categorias aristotélicas, trazendo à colação a advertência de eminente tomista contemporâneo que estudou, a fundo, a idéia de participação em Tomás de Aquino, o dominicano L.B. Geiger: “É difícil de não ver que o ser que Lavelle faz o centro de sua filosofia não tem de comum senão o nome com o ser tal como o entende a filosofia de Aristóteles e de Santo Tomás. É preciso fazer essa observação para evitar toda confusão e não censurar ao pensamento de Lavelle incoerências que seriam simplesmente o fato de uma interpretação superficial”.
Nessa ontologia, o ser é, essencialmente, ato. Bernard Delfgaauw, comentador autorizado do filósofo da “dialética do eterno presente”, escreve com razão que, em Lavelle, a bem dizer não existe relação entre o ser” e o ato, pois que há identidade entre ser e ato. Com efeito, o ato ocupa lugar, ao mesmo tempo, fundamental e último, na filosofia de Lavelle e, segundo ele, “a identidade do ser e do Ato é a chave da metafísica”. Não basta, pois, “dizer que ser é agir, como se o ato fosse em relação ao ser uma sequência natural; é preciso dizer que o ato fundamental do qual todos os outros dependem é o ato mesmo de ser”. Lavelle distingue três sentidos diferentes, bem que inseparáveis, da palavra ser: a noção de ser, o fato de ser e o ato de ser. Somente este último “nos permite apreender o ser em sua essência e em sua raiz”.
O ato é, portanto, fundamental. É o “fundo último do real”, e a este título não é jamais “dado”. “O próprio do ato é de não poder jamais ser considerado como um dado, é de ser a origem e a gênese das coisas, de se confundir o princípio que as produz”. É possível para Lavelle definir a essência do ato e para tanto não há melhor expressão que esta: “eficácia pura”, “fonte suprema de toda determinação e de todo valor”.
Se o ato é a eficácia pura, é seu fim para si mesmo. É operação pura à qual o efeito produzido não acrescenta nada, porque “o próprio do ato é de se criar a si mesmo e de não ter outro fim que ele mesmo”. Noutras palavras, o ato é concebido por Lavelle como a potência criadora imanente ao ser e que constitui sua própria essência. O ato que é a “essência do ser” é precisamente o ato que sustenta o mundo e é porque, para Lavelle, “não há diferença, sob a relação do ser, entre Deus e sua criatura”.
Uma tal linguagem poderia induzir a pensar a metafísica da “presença total” em termos de atualismo. Não é bem o caso, como acentuou justamente Jean École, porque se o ser verdadeiro é o ser em ato, a ontologia reflexiva deixa lugar ao dado e ao possível no ser, e não seria difícil mostrar que os atos mesclados de passividade, atos imperfeitos, são em definitiva atos mesclados de potência. Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, embora numa outra perspectiva, ensinam que não há verdadeiro ser senão em ato.
É a unidade do ato que funda a univocidade do ser, e é a identidade do ser e do ato que torna o ser participável. O ato de ser da criatura é sua participação ao Ser total, ao Ato puro. Tocamos aqui uma das categorias centrais da metafísica de Lavelle: a participação. Categoria de inspiração nitidamente platônica e que mereceu de Aristóteles uma crítica incisiva: “Quanto a dizer que as Idéias são paradigmas e que as outras coisas participam delas, é pronunciar palavras vazias e dizer metáforas poéticas” (Met., A, 991 a 20-22). Lavelle não se arreceia de tais objeções e prefere a teoria da participação à teoria da causalidade para explicar a relação dos seres particulares ao Ser total, mas faz uso do conceito de participação numa significação que lhe é própria.
Para ele, a participação “designa um ato pelo qual realizo o que eu sou”. Ela é a passagem incessante da potência ao ato“, porque antes de se haver encarnado, o espírito não é essência como se poderia crer, mas somente possibilidade da essência que não é determinada antes que a liberdade se tenha exercido, isto é, que a participação tenha começado. É, então, pela participação que o homem atualiza seus possíveis. Possíveis recebidos, mas que depende dele atualizá-los. Contudo, o possível faz parte do ser, é “um aspecto do ser que é criado pela própria participação e como primeiro passo no processo de sua realização”.
Segundo Lavelle, “a doutrina da participação consegue resolver o mais grave problema que a filosofia jamais se pôs, o problema da inserção de nosso ser finito num universo que, em lugar de ser colocado diante dele como espetáculo que deve ser contemplado, torna-se uma obra na qual ele deve cooperar”. Afirma, ainda, que “somente se participa de um Ato que está em via de realizar-se, mas que se realiza também em nós e por nós graças a uma operação original e que nos obriga, ao assumir nossa própria existência, a assumir também a existência do Todo”. O próprio da participação é de nos revelar, por uma experiência que não cessa jamais, a ligação do ser absoluto e do eu particular, experiência que é a de nosso próprio eu em sua relação com o Ser absoluto do qual é, ao mesmo tempo, distinto e inseparável.
A participação é concebida como uma cooperação do um e do múltiplo e o problema do um e do múltiplo do qual a participação é a chave da solução equivale a indagar como os atos particulares participam à atividade do Ato puro. Segundo nos diz explicitamente Lavelle, “é a vida mesma do espírito que exige o aparecimento de uma pluralidade infinita de espíritos particulares que deverão se constituir por uma démarche original de sua liberdade”. Sendo assim, a relação do um e do múltiplo pode ser “reduzida à relação da liberdade absoluta e das liberdades particulares”. A relação de participação assim concebida não se assimila à relação entre a parte e o todo. O homem, em última análise, participa do ser por um ato de vontade, por um ato de consentimento ao ser e, por isso mesmo, em sua raiz, o ato de participação, nos diz Lavelle, “é sempre um ato de amor”.
Aqui representa papel fundamental a distinção entre o ato e o dado. O homem em sua existência é, ao mesmo tempo, ato e dado, liberdade e passividade determinada. A essência do homem não é alguma coisa de previamente dada, mas cabe ao homem realizá-la de certo modo. Lavelle considera a relação entre essência e existência segundo que se trata das coisas ou dos seres livres: “quando se trata de um ser livre, o que chamamos sua existência não é sua fenomenalidade, é sua liberdade”. No sentido mais forte do termo, existir quer dizer executar um ato livre e_puro que nos compromete de maneira absoluta na aquisição de uma essência. Esta linguagem levou alguns de seus comentadores a situá-lo na linha das filosofias existenciais. Todavia, em Lavelle a relação entre a essência, a existência_e a liberdade é pensada de maneira diversa. A essência não é dada nem criada, é uma e outra coisa simultaneamente. Não é dada antes que nosso ato tenha começado a se exercer. Mas não é criada, neste sentido que dependeria de nossa pura liberdade. Ao contrário, segundo Lavelle, “somente há liberdade junto a uma natureza que a suporta e a limita.
A liberdade não é mais este poder sem limite, sem norma e sem razão, como no existencialismo de Sartre. Não é uma liberdade entregue a si mesma, numa existência derelicta, pura facticidade. A liberdade pela qual o eu coopera na criação de si mesmo e do mundo se exerce no processo de participação ao Ser total. O ser é valor, minha existência, ela própria, é uma valor, na medida em que minha essência se realiza no ser mediante uma liberdade participada.
Na perspectiva da participação, a metafísica de Lavelle não se reduz a uma contemplação abstrata de essências imutáveis. Para ele, a reflexão filosófica não nos faz conhecer o mundo como espetáculo, pois que nos faz assistir à formação mesma deste espetáculo. É conhecimento interior ao ser e nos revela uma atividade soberanamente eficaz à qual faz participar nossa consciência. Ela nos permite, graças a esta participação, nos criar a nós mesmos, inscrever nossa própria realidade no universo e produzi-la em Ser implica uma atitude positiva diante da existência e lugar de sujeitar-se a ela.
Esta metafísica da participação e do consentimento ao funda uma ética do consentimento. Longe de ser uma “paixão inútil”, o homem tem um destino a realizar, elevando-se “acima da natureza até a existência espiritual e, desde logo, franqueando seus próprios limites para abraçar o universo inteiro, aceita associar-se segundo suas forças ao ato mesmo da criação”.
Sendo o tempo o lugar da realização do homem mediante sua livre participação ao ser, a ontologia de Lavelle justifica uma filosofia da esperança. De resto, o tempo ocupa lugar significativo na “dialética” do eterno presente”, cujo terceiro volume é dedicado ao estudo das relações entre o tempo e a eternidade. O tempo, assegurando o “intervalo” entre Ato total e os atos particulares — cuja noção é inseparável da de participação — por este mesmo intervalo, permite aos atos particulares realizar uma atividade pessoal e assumir uma iniciativa que lhes seja própria. Do tempo, nos diz Lavelle, que é, simultaneamente, a pior de todas às coisas: a pior porque é a causa de todas as nossas misérias e faz nascer em nós a tentação perpétua de ceder à atração dos objetos e dos fins particulares; a melhor, porque permite à nossa individualidade constituir-se, nos instala em nosso ser próprio e torna possível o exercício de nossa liberdade.
Na medida em que a temporalidade é uma dimensão constitutiva do homem, e que um intervalo separa inexoravelmente o projeto de sua execução, o homem é o ser que vive no modo da espera. Mas se o homem consente ao Ser no ato de livre participação, a espera se converte em esperança. É precisamente essa ligação entre a participação ontológica de Lavelle e a filosofia da esperança que Padilha vislumbrou e soube aprofundá-la em seus dois últimos ensaios, Participação e Esperança e Uma Ética da Esperança.
Segundo Padilha, toda participação na vida concreta de cada um, “religiosa, moral, social, econômica, está a pressupor a participação metafísica ut sic — base sobre a qual repousa o existir na sua totalidade”. Esta base ele a encontra na metafísica de Lavelle. Sua originalidade consiste em tirar daí uma filosofia da esperança que está implícita na ontologia axiológica, mas não foi desenvolvida pelo pensador francês. Em Padilha, “a esperança se prende a um juízo de valor que transcende todos os julgamentos. Vincula a existência do Ser e nele põe todas as suas complacências”. A esperança tem bases onto-éticas.
Santo Tomás de Aquino destacava na esperança o bonum arduum, cum difficultate adipiscibile, o bem difícil de ser atingido e que por isso mesmo exige do homem uma atitude ativa (spes autem ad irascibilem). Este aspecto distingue a esperança da simples espera passiva. Daí porque toda esperança conscientemente assumida implica a passagem da teoria à prática. Isso explica que o filósofo Padilha não se tenha limitado à pura reflexão teórica, desenvolvendo programas em diferentes setores da vida social. É que uma esperança que não se acompanha de uma prática orientada para transformar a realidade que se quer superar, não passa de uma espera inócua e sonhadora.
