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O lavellismo de Tarcísio Padilha

Excertos de “Pela Filosofia”. Homenagem a Tarcísio Meirelles Padilha“. Pallas, 1984. Eduardo Abranches de Soveral Universidade do Porto

Em 1951, Tarcísio Padilha inicia a leitura da obra de Louis Lavelle. O vigoroso pensamento do filósofo atinge-o profundamente. Se é verdade que só buscamos aquilo que, embora de forma incipiente e imperfeita, já possuímos, e se, afinal, todo o encontro é um re-encontro, é de presumir que no jovem pensador brasileiro, que então iniciava o seu itinerário espiritual fiel aos apelos de uma vocação marcada pela fé católica e pela abertura aos problemas vivos da sua época e da sua pátria, já existisse a pré-figuração de muitas ideias e perspectivas lavelleanas.

Uma “filosofia do espírito” que solidamente se apoiava na tradição que vinha de Descartes, Malebranche e Maine de Biran (onde os problemas metafísicos eram reformulados a partir do cogito e no contexto da ciência moderna); que não ignorava nem hostilizava o neo-tomismo; que estava atenta aos movimentos existencialistas posteriores à 2a grande guerra; que prometia a superação das aporias e radicalismos que então dividiam os filósofos; que não visava um mero ecletismo, mas uma síntese integradora que revelava e justificava o que havia de verdadeiro nos vários quadrantes; e que era animada ainda pelo sereno e luminoso otimismo de uma sabedoria reconquistada — não poderia deixar de se apresentar a Tarcísio Padilha como expressão de algo que ia ao encontro do que já pensava e desejava, quiçá de maneira menos explícita e clara.

Não admira, pois, que os quatro anos que se seguiram tivessem sido dedicados à leitura integral da obra de Lavelle e dos comentários sobre ela publicados. O resultado desse esforço e dessa dedicação foi o livro A ontologia axiológica de Louis Lavelle, com que Padilha se habilitou, em 1955, à cátedra de História da Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal.

Nesse estudo pioneiro e particularmente lúcido, é de justiça salientar a informação exaustiva e uma simpatia compreensiva que não excluiu o rigor da análise nem a independência crítica e interpretativa. Constituiu de fato, essa obra, uma introdução notável à filosofia lavelleana, que mais parecia ter saído da pena de um investigador experimentado do que ser fruto do labor de um jovem que ia ainda a caminho dos trinta anos.

Cremos bem que este livro sobre Lavelle partilhou, em parte, o destino solitário dos admiráveis escritos do filósofo gaulês, que, tendo embora um mérito invulgar que todos reconheciam, quase não encontrou eco, nem foi bafejado pelos favores da popularidade.

Pensamos, ainda assim, que no contexto brasileiro a sua publicação marcou um momento decisivo, no que respeita à orientação do pensamento católico. Por sua causa, o neotomismo, que então dominava, foi abalado e enfraquecido no antimodernismo militante; embora com hesitação e reserva, passou a admitir que a filosofia contemporânea não era necessariamente incompatível com as posições metafísicas incorporadas na doutrina da Igreja de Roma.

Ao contrário do pensamento político do último Maritain, que dividiu os intelectuais católicos brasileiros porque obrigava a opções imediatas nos planos político e pastoral (é difícil, na prática, separá-los, muito em especial dentro da tradição luso-brasileira), abrindo caminho para uma teologia tributária dessas opções, e que visava fundamentá-los (anote-se a inversão de valores e a discutível metodologia) — o lavellismo, revelado e comentado por Tarcísio Padilha, rasgava uma nova perspectiva metafísica que prometia esclarecer e reforçar, a seu modo, a dogmática católica; designadamente era legítimo admitir que essa perspectiva modernizadora contivesse o segredo de uma renovação do pensamento político e da prática pastoral da Igreja “sintonizável” com a linha tradicional.

Infelizmente, Louis Lavelle morreu sem ter concluído a grande síntese explicitadora e integradora de todas as potencialidades da sua original e profunda filosofia.

Por outro lado, a prioridade dada então (como ainda hoje) à gnoseologia, na invenção filosófica, dificultava um acesso crítico à obra lavelleana que, como muito bem observou Tarcísio Padilha (livro referido, pág. 23), minimizou a teoria do conhecimento e, o que é mais grave, deixou em aberto o problema das relações entre os planos do conhecer, do agir e do sentir.

Por último ainda, os tempos não estavam maduros para uma generalizada apetência metafísica, como hoje acontece.

Os intelectuais, que no Iluminismo conseguiram um poder e um prestígio político e social como em nenhuma época anterior, estavam ainda embriagados por essa inédita situação de privilégio e permaneciam infiéis à sua vocação de servidores intransigentes da verdade, sendo muito mais ideólogos e apologetas do que filósofos. Aí residia, aliás, a raiz da sua “traição”, não sendo a demagógica adulação das massas mais do que uma consequência.

Felizmente, no que respeita a este ponto, a situação mudou muito. As circunstâncias e — quem sabe? — uma crise de consciência também, tendem a obrigar os intelectuais a redescobrir o insubstituível valor da verdade. Daí a generalizada apetência metafísica de que falamos, caracterizada pelo desinteresse por tudo que não seja essencial, pela liberdade crítica e pela convicção de que todos os problemas contemporâneos, designada e especialmente os sociais e políticos, precisam de ser re-equacionados, sem ilusões nem preconceitos e, sobretudo, sem má-fé. Como sempre, as novas gerações são muito sensíveis aos primeiros sinais das mudanças de mentalidade e, à sua maneira, mais com o coração do que com a cabeça, tendem hoje a inscrever no quotidiano, em termos existenciais, esse redescoberto amor da verdade, entendido agora — finalmente — como único caminho para a liberdade e para a dignidade do homem.

Parece assim terem chegado tempos propícios para a filosofia de Louis Lavelle. Aliás, no que se refere ao Brasil e, uma vez mais, graças a Tarcísio Padilha, a recente publicação de dois inéditos sobre a “participação criadora” e sobre a “participação moral” (in A Ordem, v. 78, n. 1-4, Rio de Janeiro, 1983), admiráveis de penetração e extraordinariamente sugestivos — terão por certo o mérito de chamar de novo a atenção para um autor que tanto oferece à reflexão contemporânea, de forma especial no contexto do pensamento católico.

Subsistem, contudo, dificuldades relativas à compreensão, aceitação e difusão do lavellismo, quer de natureza filosófica, quer teológica.

Apontarei, em resumo, as que me parecem mais salientes.

Do ponto-de-vista filosófico, como já observamos, é necessário uma análise atenta, uma explicação e, possivelmente, um aprofundamento da gnoseologia de Lavelle. Em que termos poderá a vontade estatuir uma ordem nacional? Como elaborar e fundamentar uma teoria dos valores? Como captar, veridicamente, a participação originária para que ela possa apresentar-se como experiência fundante, viva e criadora, e não como simples pressuposto exigido, com mais ou menos legitimidade, por uma análise dos dinamismos interiores e mais profundos dos existentes humanos?

No que respeita à teologia, temos para nós que serão as seguintes as maiores dificuldades:

a) O valor ontológico do Mundo. Compreende-se que o mundo material, isto é, segundo Lavelle, a totalidade das “representações fenomênicas” que preenchem os “espaços” inter-subjetivos, seja condição de pluralidade, individualidade e participação autocriadora dos espíritos incarnados, dos homens. Todavia, os espíritos incorpóreos e celestiais, que Deus não ligou à matéria, são também plurais, distintos e autocriadores mediante a participação no Ser, apoiando-se e sofrendo outras formas de “resistência” e finitude. Se os mortais têm também, como parece, acesso a essas formas transmundanas de individualização e participação, pergunta-se por que não serão elas, também para si, suficientes. Será, afinal, a mediação do mundo essencial à participação humana? Se o é, como se justifica? Se o não é, o valor ontológico do mundo não ficará tão diminuído que perderá o interesse metafísico, com todas as consequências teológicas daí decorrentes?

b) O problema do Mal e do Pecado. As luminosas análises que Lavelle faz da participação e das relações inter-subjetivas “horizontais” (estas, sim, mais do que os valores, segundo penso, definidoras do campo próprio da ontologia) — situam-se num plano onde o mal é superável e só tem funções benéficas e positivas, no plano harmonioso onde é possível a “comunicação dos santos”. Mas como entender essas relações e a própria participação, fonte única e unívoca das existências, relativamente aos anjos expulsos e aos homens condenados a uma definitiva e irremediável separação de Deus? Como entender a participação lavelleana nos abismos do eterno desespero, cujo tecido ontológico é, substantivamente, o próprio mal, e onde o amor não consegue florescer?

Aceito que o lavellismo possa responder a estas interrogações. E admito mesmo que seja defeito meu não conseguir ver, nos textos, a solução de tais dificuldades.

De qualquer maneira, a palavra fica com aqueles que mais profundamente mergulharam no pensamento do grande filósofo francês. E dentre eles se destaca, sem favor, Tarcísio Padilha.

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