lavelle:do-possivel-ao-ato

Do possível ao ato

Louis Lavelle, De l’Être, Aubier, 1957, p. 31-33.

Não se deve esquecer que a liberdade não está associada em Deus a uma natureza, que ela não se confronta nele, como em nós, a possíveis que parecem vir de outro lugar e entre os quais se pode dizer que ela terá de escolher, mas sem que lhe pertença criá-los. Pois, se não se pergunta qual é a origem da liberdade, que é sempre o primeiro começo de si mesma, pode-se ao menos perguntar qual é a origem desses possíveis que lhe são oferecidos e que preenchem o intervalo que separa a liberdade divina da nossa. Assim, a primazia da existência sobre a essência supõe, ao que parece, dois postulados, a saber: o primeiro, que o próprio da liberdade é fazer eclodir no todo do ser possíveis sem os quais ela nada seria; ora, esses possíveis não são o efeito da nadificação do ser em si, pois eles também pertencem ao domínio do ser, precisamente enquanto ultrapassam o domínio do ser realizado; e o segundo, que a essência tem mais valor que a existência, ou ao menos que ela é o valor que deve justificar a existência, já que é para ela que a existência tende, tendo apenas por objeto adquiri-la. Sabemos, por conseguinte, que a existência se encontra entre uma possibilidade que a participação faz brotar do ato puro como a própria condição de sua liberdade, e uma essência que essa liberdade forja pouco a pouco ao longo do tempo pela atualização dessa possibilidade. Admiraram-se muito, em geral, as análises dedicadas em O Ser e o Nada à consciência de si e à relação entre o eu e os outros. A consciência de si é caracterizada pela má-fé, uma má-fé de certa forma constitucional, pois é inseparável de um ser que não é o que é e que é o que não é. O que quer isso dizer, senão que se trata de um ser que se cria e nunca pode fazer de si mesmo uma coisa criada? Não se deve dizer, então, que a sinceridade é um empreendimento vão e que nunca se pode produzir a coincidência consigo mesmo? Mas isso significa simplesmente que nunca se deve falar de si, ou ainda que o ser do eu reside numa possibilidade que ele não esgota, de tal sorte que ele não pode reduzir a si mesmo, nem a uma possibilidade já realizada e que ele sempre ultrapassa, nem a uma possibilidade ainda em suspenso e que ele experimenta em si, sem que jamais esteja seguro de torná-la real. Daí essa ambiguidade da consciência que faz com que o eu pareça sempre buscar-me sem conseguir encontrar-me. Mas a má-fé, ou o que se chama por esse nome, nasce quando se transporta para o plano teórico, onde o real é considerado como já dado, esse ser que só tem substância no plano prático, isto é, cujo ser consiste em fazer-se, e que tenta realmente transformar em dado o próprio ato pelo qual se faz. Vê-se bem isso na relação que o eu de cada um de nós mantém com o eu dos outros. Pois o conhecimento que temos deles faz com que os outros homens sejam para nós objetos ou corpos, embora saibamos, contudo, que eles também são para nós consciências como nós. E é porque sabemos que eles mesmos são consciências, que eles também podem nos reduzir ao estado de objetos ou de corpos. Daí essas análises penetrantes e já célebres do olhar e do amor, onde se descreve no eu uma dupla oscilação entre um eu que se sabe eu para si mesmo, enquanto pode considerar os outros como objetos, e um eu que, sabendo que os outros também podem dizer eu, sente que pode ser, por sua vez, rebaixado por eles à categoria de um objeto. Deve-se concluir daí que cada um seja obrigado ora a subordinar o outro a si, fazendo dele um objeto, seja espontaneamente, seja voluntariamente, por uma espécie de ciúme e de crueldade, ora a subordinar-se ao outro, sentindo que não passa de um objeto para ele e por uma espécie de rebaixamento e de complacência em não ser para ele nada mais? Isso é negar que possa haver uma relação entre os sujeitos, isto é, uma comunicação entre as consciências, já que cada sujeito está constrangido a fazer dos outros um objeto, tornando-se por sua vez um objeto para o outro, embora cada um deles saiba do outro que ele também é um sujeito e só se aproveite disso para aviltá-lo ou pedir que o aviltem. É que a comunicação entre as consciências só é possível, sem dúvida, acima de uma e de outra e numa interioridade profunda e secreta que lhes é comum, onde cada uma delas penetra pela mediação da outra. Mas onde essa interioridade falta, onde ela é posta em dúvida, os indivíduos permanecem confrontados como inimigos: eles habitam juntos num Inferno onde a subjetividade de um outro não é para a minha senão um fracasso ou um escândalo; uma das duas deve ser negada ou subjugada, isto é, reduzida a esse objeto, ou a esse corpo, que a limita, e do qual se vê bem que ele é para ela um meio de dar testemunho e não de destruir ou deixar-se destruir. No entanto, a infelicidade de nossa condição provém, dizem-nos, da oposição entre o para-si e o em-si e da ambição que temos de querer que eles coincidam. Isso seria, para nós, tornar-se Deus. Mas essa ambição é irrealizável, ela é uma contradição, se é verdade que é preciso que o nada se insinue no em-si para constituir o ser do para-si. Somente, as coisas se passariam de modo totalmente diferente se fosse no para-si que se descobrisse a nós o absoluto do ser ou do si. E, sem dúvida, é verdade que ele nunca se descobre senão sob uma forma participada, isto é, onde a interioridade está sempre mesclada de exterioridade; mas, em vez de dizer que ele está ausente de nós — como um fim que nunca podemos alcançar —, deve-se dizer que ele nos está presente como uma fonte que nunca podemos esgotar. Então, o desespero que nasce do desejo idólatra de possuir um objeto infinito que sempre recua transforma-se na alegria de uma atividade que não poderia falhar e nos traz uma revelação que não mais se interrompe.

/home/mccastro/public_html/sofia/data/pages/lavelle/do-possivel-ao-ato.txt · Last modified: by 127.0.0.1