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Ideia de uma História Universal

RORTY, A.; SCHMIDT, J. (EDS.). Kant’s Idea for a universal history with a cosmopolitan aim: a critical guide. Cambridge, UK ; New York: Cambridge University Press, 2009.

As nove proposições de Kant expressam de maneira sutil e implícita – e reformulam – algumas das fontes filosóficas de suas visões: as vozes dos estoicos e de Agostinho são ouvidas com clareza; e, embora Kant tivesse ressalvas em relação a Grotius, Hobbes, Leibniz e Rousseau, suas contribuições, juntamente com as de Mandeville e Adam Smith, são manifestas em Ideia de uma História Universal. É como se este ensaio fosse um cadinho no qual Kant buscou sintetizar as visões purificadas e transformadas de seus predecessores, condensando-as em uma história política e cultural abrangente, com uma moral filosófica. Ele próprio é um exemplo da integração entre história e reflexão filosófica que anuncia.

Dos estoicos, Kant absorveu a ideia de que a natureza nada faz em vão, de que suas regularidades não são acidentais, mas revelam uma organização funcional na qual cada parte desempenha um papel necessário, e de que o exercício da racionalidade constitui a liberdade humana e encontra sua mais alta realização no cosmopolitismo político. Kant seguiu Agostinho ao ver um significado providencial na história; mas Agostinho distinguia a ordem divina da Cidade de Deus da cidade humana temporal, enquanto Kant se concentrou na maneira pela qual os esforços humanos – muitas vezes antagônicos e inadvertidos – realizam as esperanças milenares dentro da história humana. Como Grotius, ele sustentou que existem leis naturais universais que, em conformidade com a racionalidade humana, governam o direito político e moral entre as nações. Embora concordasse com Grotius que essas leis são descobertas racionalmente, e não empiricamente, Kant não seguiu Grotius ao fundamentar a necessidade e legitimidade das leis racionais na autoridade divina. Também não compartilhou da suposição de Grotius de que os seres humanos são naturalmente sociáveis; na verdade, a insociabilidade fundamental da espécie tem grande peso em seu argumento. Como Hobbes, Kant pensava que a paz e a organização política surgem do reconhecimento racional de que a competição e os conflitos ameaçam a inclinação natural humana à autoproteção. Mas Hobbes postulou a racionalidade como pré-condição para a possibilidade de organização política, enquanto Kant pensava que a organização cívica racional emergia gradualmente do reconhecimento de que o antagonismo ameaça o instinto natural de autopreservação.

Juntamente com Mandeville, Leibniz e Adam Smith, Kant sustentava que existe um padrão oculto, uma lei que subjaz – e harmoniza – as atividades aparentemente destrutivas e estritamente egoístas da humanidade; a mão invisível da natureza se manifesta para aqueles que sabem ler a história e a economia corretamente. No entanto, em contraste com Mandeville, ele não acreditava que a virtude pública surge dos vícios privados: é o produto de instituições políticas racionalmente construídas. Como Smith, Kant pensava que a moralidade requer atividade reflexiva autolegisladora; mas onde Smith via as origens de tal atividade no desenvolvimento de sentimentos morais, Kant a localizava na atividade da vontade racional.

Kant compartilhava da desconfiança de Rousseau na capacidade das afeições sociais de fornecer uma fonte confiável de moralidade racional. E, como Rousseau, ele seguiu os estoicos na construção de uma história mítica – uma espécie de história natural – das etapas no surgimento da autolegislação racional. Ele compartilhava da convicção de Rousseau de que a conquista da organização política constitucional é fundamental para uma sociedade civil justa e que a liberdade individual e política genuína consiste em autonomia, e não em inclinação irrestrita. Mas enquanto Rousseau assumia que tal harmonia só é possível em pequenas comunidades isoladas, Kant argumentava que apenas uma organização política cosmopolita pode garantir a paz necessária para alcançar tal autonomia. Embora concordasse com Leibniz que uma ordem providencial subjaz ao aparente caos aleatório da natureza, ele discordava da visão de Leibniz de que a harmonia cósmica expressa a vontade divina. Além disso, enquanto a harmonia divinamente ordenada de Leibniz é atemporal, Kant pensava que a harmonia cosmopolita poderia ser alcançada pela atividade humana livre através de uma longa e antagônica luta: o que Leibniz argumentava ser uma implicação da metafísica torna-se, para Kant, o produto da história. Os sucessores de Kant ecoaram muitas das ideias centrais de seu ensaio, mas – uma vez separadas do argumento mais amplo em que ele as situou – seu significado foi radicalmente modificado. Hegel também via a história como uma narrativa do surgimento antagônico, mas providencialmente progressivo de uma ordem mundial racional e autolegisladora, mas tinha reservas sobre o que via como as esperanças utópicas de Kant para uma ordem mundial cosmopolita. Marx compartilhava da convicção de Kant de que a história é impulsionada por paradoxos e contradições, mas a preocupação com os direitos que estava no cerne da explicação de Kant sobre a sociedade civil não desempenhou nenhum papel em sua teoria da sociedade. Darwin e seus seguidores, como Kant, insistiriam que a evolução das espécies não é obra de indivíduos (e, de fato, não necessariamente reverte em seu benefício), mas rejeitaram sua tentativa de encontrar sinais de providência no funcionamento da natureza. No final, o precipitado do composto sintetizado de Kant provaria ser tão diverso quanto os elementos que o compunham.

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