Jankélévitch (1981) – O não-sei-quê e o quase-nada
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Le Je-ne-sais-quoi et le presque rien. Paris: Éd. du Seuil, 1981.
Há algo que é, por assim dizer, a má consciência da boa consciência racionalista e o escrúpulo último dos espíritos fortes; algo que protesta e “remurmura” em nós contra o sucesso das empresas reducionistas. Algo comparável, senão às censuras interiores da razão diante da evidência ultrajada, ao menos aos remorsos do foro íntimo, isto é, ao mal-estar de uma consciência insatisfeita diante de uma verdade incompleta. Há algo de inevidente e de indemonstrável ao qual se prende o lado inexaustível, atmosférico das totalidades espirituais, algo cuja presença invisível nos preenche, cuja ausência inexplicável nos deixa curiosamente inquietos, algo que não existe e que é, contudo, a coisa mais importante entre todas as coisas importantes, a única que vale a pena ser dita e a única justamente que não se pode dizer! Como explicar a ironia bastante derisória desse paradoxo: que o mais importante, em todas as coisas, seja precisamente o que não existe ou cuja existência, ao menos, é a mais duvidosa, anfibólica e controversável? Que gênio maligno impede que a verdade das verdades seja jamais provada de modo inequívoco? Tanto valeria perguntar por que é justamente o mal que é tentador, o prazer nocivo que nos atrai, o dever-ser que nos repugna! Não é aqui o lugar de nos interrogarmos sobre a ataxia constitucional que faz do dado enganoso uma evidência óbvia e inambígua, da única coisa essencial um absconditum e um mistério, que nos subtrai esta divertindo-nos com aquela…
A nostalgia de algo outro, o sentimento de que há outra coisa, o pathos de incompletude enfim animam uma espécie de filosofia negativa que sempre esteve à margem e às vezes no centro da filosofia exotérica. Platão, que sabe, quando diz as coisas indizíveis, abandonar o discurso dialético pelo relato mistériologico, Platão fala no Banquete de um algo outro de que as almas dos amantes são cativas, que não podem exprimir, que apenas adivinham e sugerem em enigmas: allo ti boulomene hekaterou he psyche dele esti ho ou dynatai eipein, alla manteuetai ho bouletai kai ainittetai. É verdade que esse algo outro é a unidade da natureza primitiva, a qual é coisa atribuível e, em suma, dizível; mas o fato de ser o objeto de uma reminiscência pré-natal e de um voto metempírico maiores que todo desejo sensível obriga Aristófanes a expô-lo miticamente e a conferir-lhe um caráter inexplicável tanto quanto inesgotável. Sem esse misterioso e sobrenatural allo ti, seria a aporia do amor, tal como a descreve o Fedro, igualmente evasiva?
Tendo enumerado à maneira de Aristóteles os caracteres da beleza poética, o P. Rapin, citado por Henri Bremond, acrescenta: “Há ainda na poesia certas coisas inefáveis e que não se pode explicar. Essas coisas são como que os mistérios.” Eis um ainda que não é um posfácio ordinário! O “ainda” poético dos jesuítas Rapin e Ducerceau, como o algo outro erótico do discurso de Aristófanes, é uma alusão ao infinito e uma abertura sobre o indizível; esse “resíduo” de mistério é a única coisa que vale a pena, a única que importaria conhecer, e que, como de propósito, permanece incognoscível. O segredo, como ocorre com a morte, é decididamente bem guardado, a ignorância humana é decididamente bem combinada! Muitos nomes puderam ser dados a esse inominado inominável, muitas definições propostas para esse “algo outro” que justamente não é como os outros porque, em geral, não é nem uma coisa nem algo.
