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O princípio de subsistência, razão da pessoa

Gabriel Marcel, Le Mystère de l’Être, Aubier, 1951, t. II, p. 149-153.

Quanto mais as condições sociais existentes levam não apenas a considerar, mas a tratar de fato os homens como massas — ou seja, como agregados cujos elementos são chamados a se substituir uns aos outros conforme as vicissitudes temporais — mais difícil se torna manter presentes no espírito os caracteres de unicidade e dignidade inalienáveis que no passado eram vistos como atributos da alma humana criada à imagem de Deus…

Refletindo bem, aliás, estamos diante de um verdadeiro círculo vicioso. Quanto menos os homens forem pensados como seres no sentido que buscamos definir acima, maior será a tentação de tratá-los como máquinas capazes de produzir certo rendimento; sendo esse rendimento a única justificativa de sua existência, acabarão por não ter outra realidade senão o próprio rendimento. Eis um caminho que leva diretamente ao campo de trabalho forçado e ao forno crematório. Atentemos aqui para um paradoxo que merece, creio eu, toda nossa atenção: poder-se-ia supor teoricamente que, a partir do momento em que a maioria dos homens em uma sociedade deixasse de acreditar em uma vida após a morte, esta vida aqui ganharia ainda mais valor em seus olhos e se tornaria objeto de maior respeito. Mas na realidade nada disso ocorreu — muito pelo contrário. A vida terrestre passou a ser vista cada vez mais como uma espécie de fenômeno sem valor, sem justificativa intrínseca, e que por isso poderia ser alvo de toda sorte de manipulações que, em outro contexto metafísico, seriam consideradas sacrilégios.

Assim, a reflexão nos leva a discernir uma articulação extraordinariamente estreita entre o juízo metafísico propriamente dito (ou, se preferirmos, uma Weltanschauung que, claro, permanece sempre relativamente indistinta) e um modo de comportamento desumanizante que não pode deixar de se generalizar em um mundo cada vez mais submetido à exigência tecnocrática. Dessa forma, cria-se para mentes que gradualmente perderam toda capacidade de reflexão — e que sequer suspeitam do que possa ser a fé — um sistema de aparências tão consistente que se torna verdadeiramente a realidade. Quero dizer que ele se consolida, por assim dizer, cada vez mais e acaba por apresentar um caráter intimidante de irredutibilidade. A generalização da escravidão, sob qualquer forma que se manifeste — formas essas desigualmente monstruosas, embora seja evidente que os países totalitários não têm seu monopólio —, é sem dúvida o fato mais marcante de um mundo assim entregue à morte. Quando digo “entregue à morte”, quero dizer incapaz de resistir ao poder de fascinação que a morte exerce sobre quem passou a vê-la como a palavra final.

Objetar-se-á, é verdade, que mesmo aqueles que negam com mais firmeza a imortalidade pessoal se fazem arautos de um futuro glorioso — não do indivíduo, mas da espécie, ou de determinada sociedade divinizada: Alemanha nazista ou Rússia soviética. Ninguém contestará que a esperança nesse futuro tenha sido, para uma infinidade de oprimidos e militantes, uma alavanca extremamente poderosa, elevando-os literalmente acima do destino miserável que era o seu nesta terra. No entanto, seria preciso — como já disse alhures — alcançar por uma espécie de simpatia iluminadora o que se poderia chamar de face interna do sacrifício. Pois, em última análise, se nos limitarmos às aparências externas, não há resposta para quem declara absurdo que um homem sacrifique sua vida para preparar o advento de um mundo que não verá. Mas tudo o que dissemos anteriormente sobre a fé nos preparou para entender que ela é infinitamente mais que um estado de consciência e que não pode, em hipótese alguma, ser reduzida ao sentimento muito confuso — ou à imagem ainda mais confusa — que dela pode ter aquele a quem foi concedida. Enquanto crente, ele está perpetuamente além de si mesmo, e por “si mesmo” deve-se entender o que eu chamaria de seu equipamento imaginativo. Para tomar um exemplo muito simples: o homem que se sacrifica por seu filho está, na realidade, possuído por uma fé cujo conteúdo ele não precisa, em princípio, elucidar; essa fé se refere a uma certa unidade supra-pessoal entre seu filho e ele mesmo. Em termos claros, diria que ele tem certeza — mesmo sem saber, e talvez essencialmente sem saber — de não desaparecer, mas sim de sobreviver nesse filho, e essas palavras devem ser tomadas em um sentido ao mesmo tempo muito misterioso e muito preciso. Pois isso deve significar participar, segundo modos de existência que não precisamos imaginar em detalhes, dessa realidade à qual ele se imolou. O sacrifício só pode ser justificado — ou mesmo simplesmente pensado — do ponto de vista de uma ontologia fundada na intersubjetividade; caso contrário, é uma ilusão, um logro. É preciso dizê-lo da forma mais categórica, mesmo que isso escandalize certos semiagnósticos cuja reflexão é falha ou que, em muitos casos, não sondaram a fundo a experiência humana: é nesse terreno da imortalidade que se situa a opção metafísica decisiva.

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