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Primazia do prático em Fichte

VetoKS

O jovem Fichte estava convencido da verdade do espinozismo e somente a leitura de Kant lhe permitiu libertar-se da crença no determinismo universal. Foi a Crítica que o levou a fundamentar na metafísica a primazia do prático ou, mais precisamente, uma metafísica cujo primeiro princípio é o eu autônomo. Sem dúvida, o ensinamento sobre o eu é de inspiração moral, mas o moralismo se amplia e se aprofunda em uma metafísica idealista. O eu autônomo não é apenas a mola propulsora de uma ação livre, mas também e sobretudo o princípio de um idealismo em que a apriorização sistemática do conhecimento é possibilitada por uma subjetividade produtora de conceitos puros. Fichte se considera discípulo e sucessor de Kant, mas critica-o por ter apenas lançado as bases, por ter fornecido apenas as premissas do idealismo transcendental. Ele critica Kant por suas imperfeições, por suas inconsistências, por suas falhas, e essa crítica apresenta, de forma implícita, o essencial das posições da Doutrina da Ciência. Kant, sem dúvida, fez avançar a filosofia de maneira incomparável, mas não soube deduzir a partir de um único princípio e, embora tenha fornecido, por assim dizer, o conteúdo material do “eu”, negligenciou o desenvolvimento explícito do conceito. E, acima de tudo, se conseguiu demonstrar a validade das categorias, não as expôs numa ordem sistemática. Finalmente — e talvez isto seja o mais grave — contentou-se em utilizar os conceitos provenientes do eu para ordenar o diverso sensível, em vez de mostrar que é o próprio eu que produz o diverso. Em suma, Kant não soube explorar as descobertas do seu próprio génio. Ele apresenta ensinamentos radicalmente novos sobre a subjetividade transcendental, mas não os deduz conceitualmente de forma adequada.

Reinhold, um dos melhores intérpretes da Crítica, já havia apontado essas lacunas e se dedicou à tarefa de pensar a filosofia a partir de um princípio único, o da representação. Foi o “período reinholdiano” da filosofia. Mas Fichte queria ir mais longe. Para ele, as proposições da consciência pressupõem as do eu, todo o conhecimento deve ser deduzido a partir do eu. O momento decisivo da reflexão fichteana foi aquele em que, após uma iluminação semelhante à de Descartes, ele percebeu que o ato pelo qual o eu se apreende, se posa, é princípio do conhecimento, ou mesmo de todo o conhecimento. A auto-posição do eu está na origem de toda a consciência e de todo o conhecimento, e o sentido profundo do idealismo alemão, sua intuição primeira, é precisamente o desdobramento do mundo do saber a partir da vida do Eu. O idealismo consequente professa a subjetividade de todo o conhecimento. O verdadeiro conhecimento provém do sujeito, que não deve recorrer a nada que seja externo. O eu compreende e concebe tudo na medida em que produz tudo. Os conteúdos do eu são transparentes, racionais, pelo fato de que o sujeito que os produz é um Eu puro.

Fichte reprova seu grande predecessor por não ter sabido ou querido desenvolver a filosofia a partir de um princípio único, pois “uma filosofia que não é inteira não é uma filosofia verdadeira, mas apenas pensamentos piedosos para todos os dias do ano”. A garantia da inteligibilidade, da coerência de um pensamento, a fortiori de um pensamento filosófico, é assegurada pela sua origem a partir de um princípio primitivo único. A filosofia deve ser um sistema, e esse sistema deve ser fundamentado num primeiro princípio absolutamente certo, que não pode ser demonstrado por outro, mas que condiciona e demonstra todos os outros. Esse princípio é o eu.

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