Subjectividade
(Gil1998)
Deixamos de lado a construtibilidade, para nos concentrarmos na acção que dela é o substrato. A visão, escreve Weyl, deve ser acção. Ora a acção é negócio do sujeito e dele apenas. Citando Fichte, «só do meu fazer tenho consciência imediata» ]. Que se deve entender por subjectividade? Queremos dar a este termo um conteúdo mínimo, «desinflacionado», sem as sobrecargas que lhe impõem as filosofias da consciência (por exemplo, a intuição bergsoniana) ou as epistemologias hermenêuticas (por exemplo, a empatia). Com vários outros autores, consideraremos subjectivas pelo menos três espécies de conteúdos da experiência que são ao mesmo tempo qualitativos, intransmissíveis e não-relacionais. Em primeiro lugar, o próprio sentir da experiência: a qualidade que têm para mim esta dor que sinto ou este vermelho que percepciono (como diz Thomas Nagel, what it is like to see). A consciência imediata da acção, segundo a fórmula de Fichte, é uma modalidade privilegiada deste sentir (ela não tem de ser tematizada, sublinhe-se desde já, pode dar-se numa forma «enevoada», dumpfes, continuando a citar Fichte). Os filósofos anglo-saxões chamam qualia a estas propriedades experienciais que se estendem ao conjunto da vida psíquica: sinto também o pensamento que me atravessa ou o desejo que me impele.
Sou também consciente do meu querer e das minhas intenções de um modo imediato, não-transmissível e não-relacional, e a vontade exprime-se por acções. E tenho por fim uma intuição de mim próprio enquanto portador da experiência que é a minha: este vermelho, esta dor, são exclusivamente meus. A subjectividade significa aqui a qualidade de imanência que todo o dado consciente apreser a para um sujeito. Fichte denomina-o sentimento de si. «Por que é que os meus pensamentos, as minhas intuições (isto é, percepções, na terminologia do século xviii), etc., não me aparecem como o movimento de qualquer coisa de estranho fora de mim? Por que é que me aparecem como meus?» 4. Malebranche dizia quase a mesma coisa. Não conhecemos a alma pela sua «ideia», «conhecemo-la apenas por consciência», por um «sentimento interior», «confuso» se bem que indubitável («que não é de modo algum falso») 5. O cogito de Malebranche situa-se nos antipodas do cogito cartesiano. O espírito conhece «a existência das criaturas e a sua própria existência» por «um sentimento confuso, sem luz e sem evidência» 6. Trata-se não de um conhecimento de si ou de uma reflexividade mas, simplesmente, de uma experiência qualitativa (é o que «consciência» quer dizer em Malebranche).
Esta descrição ao rés das aparências —fenomenologicamente ela parece dificilmente contestável— deveria evitar alguns equívocos e poupar explicações já que as objecções dirigidas contra a autonomia conceptual da consciência decorrem frequentemente da confusão do conhecimento intelectual com a experiência de si. A consciência não é uma representação nem se acompanha necessariamente por uma representação, a crítica epistemológica do cogito não se estende eo ipso à consciência fenomenológica. É sobre esta versão fraca da consciência que se estabelece o nosso conceito de subjectividade; ela revela-se no entanto suficientemente poderosa para engendrar as categorias da compreensão, por uma série de juízos sintéticos a priori que não cabe aqui enumerar. O querer — que é a forma superior de uma cadeia de figuras com assento no desejo (Schopenhauer) — materializa-se em acções e, ao fazê-lo, espacializa-se e temporaliza-se. Como se explicará noutra sede, a energia activa do querer é igualmente a fonte última da convicção. E a compreensão não é senão o quale do conhecimento, «como é», para mim, conhecer.
