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Experiência de si

(Gil1998)

A experiência de si é diversificada.

(3a) O eu constitui uma experiência de identidade, sou para mim sempre o mesmo. Uma criança que conheci de perto — meu filho — tomou consciência muito cedo da morte, o que o apavorou. Para lhe dizer alguma coisa que o pudesse consolar respondi-lhe o que se responde nestas circunstâncias: que se morre velho e se muda muito até lá e que, portanto, o velho que ele viria um dia a ser encararia a morte de maneira diferente. Mas tive de me calar face à réplica que me foi feita: «Não, porque quando for velho terei o mesmo nome.» Não conto esta história para dar prazer aos estruturalistas lacanianos eventualmente presentes (a identidade adviria do nome), mas porque há por certo que relacionar a adesão à identidade e a morte.

(3b) O eu vive-se também na qualidade de portador da experiência própria. Esta experiência não se confunde com a consciência de si, ela exprime-se por um sentimento de pertença: a inerência a mim da minha vida psíquica na sua totalidade (ideias, volições, sentimentos, percepções, etc.). Fichte chama-lhe sentimento de si, para indicar que o sujeito se percebe passivamente. Ele é aqui mero suporte das suas representações. O eu não é aqui a consciência de si, mesmo enevoada, será antes um proto-sujeito definido pela categoria aristotélica do ter ou possuir (echein), e é interessante que as línguas atestem por vezes uma indistinção originária do pronome possessivo e do pronome pessoal. Cassirer interessou-se por esta questão, no capítulo da Filosofia das Formas Simbólicas sobre «a expressão intuitiva» (I, 1923).

(3c) O eu experiencia-se com igual primitividade enquanto agente, sede de acções, sujeito volitivo. A vontade própria é talvez uma das primeiras figuras do eu a terem sido tematizadas. Aristóteles consagra um capítulo da Ética Nicomaqueia ao hekousion, «o acto cujo princípio reside no próprio» (archê en autó, m, 3, 1111 a 20), o que não sucede com o acto involuntário. Mas as acções «feitas por impulsividade ou por concupiscência» pertencem ao registo do hekousion: a vontade é a extremidade superior de uma cadeia energética que começa na pulsão e no desejo. (Fazemos nosso o ponto de vista de Schopenhauer, diverso do de Kant: desejar, fazer e querer inscrevem-se no mesmo registo.)

(3d) E o eu é um sentir da experiência. Tomamos esta dimensão na sua maior latitude, incluindo nela não só as emoções e os sentimentos mas também a qualidade intransmissível que para mim apresenta a dor que sinto ou a cor que percepciono (what it is like to see this red, parafraseando Thomas Nagel). Tais propriedades experienciais (qualia) abrangem o conjunto da vida psíquica: «sinto», com igual intransmissibilidade, esta recordação que me vem ao espírito, este pensamento que construo, esta associação de ideias que me ocorre, esta sede que me atormenta.

É instrutivo que os diferentes conceitos do eu façam sistema pois são muito diferentes — indicam-no os seus opostos, que de nenhum modo se coordenam: respectivamente, não consciente, exterioridade, cisão ou pluralidade interna da consciência, despossessão de si (ser-se um zombie ou uma máquina, com o mesmo comportamento, os mesmos desejos, as mesmas representações ou ideações que um eu, mas sem a consciência disso), heteronomia da vontade, não sentir. Estes conceitos referem-se a esferas de significação díspares; como explicar então que as figuras contrárias pareçam fundir-se no eu?

A resposta é que, sem se confundirem fenomenologicamente, elas se agrupam em famílias, que exibem nervuras comuns. Em primeiro lugar, (1) consciência de si, (2) consciência da interioridade e (3) experiência de si realizam um aprofundamento sucessivo do eu. A consciência de si é uma pura forma sem conteúdo: circunscreve-se ao «eu penso» ou, mais subtilmente, à actividade da mente «fazendo retomo sobre si mesma», desligada dos seus objectos, «agilidade» pura: é assim que Fichte descreve o que chama intuição intelectual (e o cogito será então apenas uma modalidade da actividade da mente). Depois, a consciência da interioridade do sujeito — a subjectividade — constitui o conteúdo da consciência de si; mas é um «conteúdo formal», pois se esgota na delimitação da esfera subjectiva. É o nosso terceiro estrato, a experiência de si, que fornece uma matéria à consciência de si e da interioridade. Há portanto uma concatenação interna dos modos do eu. Cada um deles é vivido como exprimindo uma unidade, imediatamente nos dois primeiros casos (dizer «forma» é dizer «unidade»), mediante a identidade pessoal no terceiro. E a concatenação traz consigo um valor acrescentado de unidade. Mas estas experiências de unidade sobrepõem-se sem propriamente se fundirem.

Em segundo lugar, a unidade da consciência de si (1) é a forma incipiente da unidade da identidade pessoal (3a). Aquela dá-se no instante, esta realiza-se pela permanência do eu através do tempo, através da duração. (O título de Paul Éluard, Le dur désir de durer, relaciona identidade, duração e morte.) Recorde-se que para Kant a substância resume-se numa permanência — e depreende-se do parágrafo 16 da Crítica da Razão Pura que se deve também entender assim a identidade da apercepção transcendental. A permanência temporal é a maneira menos essencialista de considerar a unidade do eu. O sujeito vive-se idêntico a si próprio no curso do tempo, e por isso crê formar uma unidade concreta, efectiva — ao invés da consciência de si, puramente formal, e nos antipodas das determinações conceptuais da identidade, tal a «noção completa do indivíduo» segundo Leibniz (aliás, a noção completa exprime a unidade temporal de uma biografia). Vamos porém ver que a permanência no tempo não é menos problemática que o essencialismo.

Notar-se-á ainda que o querer e a actividade (3c), por um lado, o sentir e a passividade (3d), por outro, formam as duas faces de uma mesma moeda, pois se pensam uma pela outra. E o fazer (poiein) e o padecer (paschein) respeitam ao conjunto da vida mental. Quer a consciência de si quer a consciência da subjectividade envolvem actividade e passividade (tem-se em ambas uma «subjectobjectividade», traduzindo um conceito fichtiano). É o que também se verifica com ser-se portador da experiência própria (3b), que vale para o conjunto da consciência e da experiência de si. A experiência do cogito é minha, como são minhas a consciência privada, a vontade, o sentir e o fazer, a identidade.

Deparam-se-nos agora autênticas experiências de unidade implicando todos os aspectos que considerámos no eu: os seus eixos são pois o fazer e o sentir, e deter-se a subjectividade na primeira pessoa. Ora, uma última fusão reúne estes dois últimos modos do eu e nela se enraiza, em última análise, o sentimento da unidade do eu, porquanto transportar a minha subjectividade é uma experiência ao mesmo tempo activa e passiva. («Transportar» é uma designação apropriada uma vez que sugere também a permanência através do tempo.) Objectar-se-á que se tal é talvez pacífico no que toca à passividade — ser portador da subjectividade própria significa senti-la minha, antes de conscientemente o saber—, já parece menos claro que a «posse» da experiência testemunhe uma actividade. A posse opõe-se à privação (Aristóteles, Categorias, 10), não à passividade. Mais profundamente, porém, a posse representa a sedimentação de um certo tipo de actividade, tornada uma disposição permanente — habitus traduz hexis —, em vista à acção: o habitus é uma pré-disposição para agir («ter a vista» é a capacidade de ver, que é uma actividade). Assim, os dois modos do eu subjacentes aos demais (3b, 3c e 3d) remetem para um registo único. O ter dá-se pelo padecer, a posse consiste em ser-se suporte de si. Em nenhuma das suas manifestações imediatas o eu releva do conceito; embora descritas por conceitos, nem a consciência de si, e da interioridade, nem a experiência de si, constituem conteúdos de sentido (são «consciência» e «experiência», apenas) — e muito menos é assim no seu estrato derradeiro, isto é, a pura actividade e a pura passividade. Se porventura tivéssemos acesso às mentes alheias, seria legítimo admitir um «eu colectivo» no que toca às representações (ideatos, memórias, ficções). Mas cada um de nós continuaria a ser suporte e sentimento exclusivos desse universo representacional partilhado: nem a consciência nem a experiência de si, em qualquer dos seus aspectos, são da ordem da representação e da linguagem. Pretender que a comunidade as abrangeria implicaria em última análise a abolição da própria intersubjectividade: os outros e o próprio formariam um eu único. Ou seja, a hipótese de os outros e o próprio formarem um eu único é self-defeating.

Resumindo, a unidade do eu não resulta do «penso» cartesiano ou kantiano, mas de um «faço e sinto». Fichte poderia aceitá-lo porque a intuição intelectual consiste numa actividade tomando-se a si mesma como objecto; e também porque o sentimento é uma «condição» (Fichte) da intuição intelectual.

Teremos assim reconstituído a gênese da unidade do eu, melhor dito, do sentimento da unidade do eu — a sua arqueologia. Vimos sucessivamente que o eu é uma forma (uma pura forma, a consciência de si, e um conteúdo formal, a esfera subjectiva). Ocupam-na as experiências da permanência temporal, da posse de si, do agir e do padecer. Tudo isto se aglutina, e dir-se-á então que o eu significa a permanência de uma forma que se experiencia na qualidade de um sentir e um agir imanentes. Mais simplesmente, o eu é uma forma activa sentindo-se e transportando-se a si mesma.

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