Eu (Gil)
(Gil1998)
Como self, «eu» e os pronomes pessoais substantivados equivalentes em outras línguas são termos que recobrem significações diversas. O eu declina-se de várias maneiras. Todas elas são objecto de reflexão, pelo menos desde o século XVII (não vou perguntar-me aqui até que ponto o eu é uma invenção moderna), e delas se ocupam também algumas escolas budistas. As significações do eu são motivo de controvérsia, desde Descartes e Malebranche e de Hume e Kant, até hoje — e assinale-se que o cognitivismo deu um novo vigor ao problema do eu, que muitos consideravam enterrado ou, pior, definitivamente desconstruído (o mesmo acontece com a relação entre mente e corpo: uma das virtudes do cognitivismo é evidenciar a robustez dos temas tradicionais da filosofia). Em que consiste então o problema, e quais são as significações do eu? ]
O problema. Sumariamente dito, parece haver uma desconformidade entre o sentimento da unidade da consciência — apercebo-me como sujeito e sujeito distinto do mundo, e ainda sujeito da experiência que a cada momento tenho da minha própria vida — e a dificuldade, se não a incapacidade, de determinar um pólo «estável» de tal unidade. É um tal pólo que temos sobretudo em vista quando pensamos o self. Mas no que respeita ao seu estatuto de ser e ao acesso cognitivo que a ele temos (ontologicamente e epistemologicamente, portanto), o eu permanece um enigma — e daí as controvérsias.
As significações. Aperceber-me na qualidade de sujeito significa ter consciência de mim. O eu enuncia-se pelo pronome pessoal. «Consciência» opõe-se ao que seria um estado de não consciência (o inconsciente, o subconsciente, o pré-consciente): sei-me ser eu hic et nunc, por isso falamos de consciência de si (self-consciousness), quer se entenda este saber-se como uma representação, de que o cogito seria a expressão suprema, quer como uma consciência não reflexiva, não tética, isto é, não colocando o sujeito enquanto tal. Aperceber-me distinto do mundo significa aperceber-me separado do que está fora de mim. A oposição faz-se agora entre o interior e o exterior, o Eu e o Não-Eu, para evocar Fichte, que, com Kant, será uma das minhas referências: a consciência da subjectividade é coextensiva à consciência da objectividade. (A outra referência é a philosophy of mind contemporânea, embora quase a não cite explicitamente.) Dentro, ou ao lado do que não é eu, os outros ocupam um lugar muito especial; mas deixarei de lado o papel do outro na instituição do eu.
Por fim, ser sujeito da experiência que tenho da minha própria vida (e não já simplesmente ter consciência de mim e da minha subjectividade) significa várias coisas conjuntamente: a identidade pessoal, ou seja, que me experiencio como dotado de uma certa coerência, «igual a mim mesmo». E, por aí —mas não é a mesma coisa—, como portador da experiência que tenho de mim e do mundo. É na primeira pessoa que a vivo, não somos chose tierce et étrangère à nous-mêmes (Montaigne, livro il, cap. 6). Faz ainda parte da experiência de si pôr-me na origem das minhas acções, sou sujeito de desejo e de vontade. E, ainda, cada vivência apresenta para mim, e para mim só, uma certa qualidade: o eu é um sentir que acompanha todas as modalidades da vida psíquica. Todas estas declinações do eu são intransmissíveis (eu só e mais ninguém sou o seu suporte), não relacionais (denotam dados circunscritos em si mesmos) e qualitativas (exprimem propriedades que não aumentam nem diminuem). Não se deixam deduzir de alguma outra significação mais primitiva do eu, cada uma delas é específica e última. Mas estão também ligadas por algumas determinações comuns, como vamos ver.
O tratamento, mesmo superficial, de qualquer destes aspectos ocuparia mais tempo do que o de que disponho. Mas uma palavra sobre o que veiculam e sobre as suas inter-relações permitir-nos-á apreender o que se joga no conceito do eu. Queremos saber de onde vem a adesão a si que se impõe ao sujeito, mau grado a dificuldade em se aferrar — o verbo é de Sá de Miranda. Convém neste ponto recordar que o problema foi colocado de uma vez por todas por Kant, no admirável capítulo sobre os Paralogismos da Crítica da Razão Pura. Que leva a mente (Kant fala de alma) a olhar-se como substância e substância simples e una, qual é o segredo da operação que transforma a «unidade da consciência» numa «intuição do sujeito enquanto objecto» (B 421)? Segundo Kant, a unidade da consciência mais não é que um requisito transcendental, condição da coerência da experiência mediante a aplicação das categorias do entendimento aos fenômenos. O eu é a referência estável, a testemunha dessa aplicação. Só neste sentido a unidade da consciência é «fundamento» (ibid.), na forma de um «eu penso». O «eu penso» seria uma representação cuja função consiste em «acompanhar», cito Kant, as demais representações. A isto se limitaria o seu papel cognitivo (deixo de lado o domínio da liberdade e da moral) — a sua substancialização constitui uma «hipóstase». Pelo meu lado, vi nesta hipóstase um modo privilegiado, se não principiai, de uma evidência alucinatória que rege talvez a nossa ideia de verdade. A primeira verdade alucinatória será a verdade do eu enquanto princípio de toda a verdade possível: lembrar-nos-emos a este respeito de que a intenção presidindo ao cogito é epistemológica, o cogito interessa Descartes na medida em que servirá de «ponto arquimediano» do saber.
Voltando aos conceitos do eu, este significa, pois, (1) uma consciência «pontual» de si. Ela não tem de ser reflexiva, pode ser obscura, «enevoada» (Fichte). Segundo Malebranche, não conhecemos a alma por uma «ideia» clara e distinta mas por um «sentimento» confuso que no entanto não se presta à menor dúvida. O eu é também (2) consciência de uma interioridade, diferenciada de um não eu, e dos outros eu que não são eu. Salvo a hipótese hiperbólica de um gênio maligno que me enganaria na própria medida em que algo me parece evidente, distingo fenomenologicamente as representações de que sou o autor e aquelas de que não o sou, por exemplo a percepção de vós nesta sala. O ónus da prova cabe a quem pretende provar o contrário, pace Wittgenstein, o neo-behaviourismo e o funcionalismo. Neste sentido, o eu está fechado em si, e os demais sujeitos configuram outras tantas esferas «privadas». Mas a palavra «privado» não é boa. O privado e o público dão-se conjuntamente, a consciência revela o seu carácter privado quando põe entre parênteses a sua consciência do mundo. Tal é o sentido da Refutação do Idealismo de Kant, ainda na primeira Crítica. Mas é preciso notar que, consideradas em si mesmas, nem a consciência da esfera privada (a «subjectividade») nem a consciência do mundo são experiências relacionais. (Empregarei os termos «privado», «interioridade», «subjectividade» quase como sinônimos.)
Finalmente, o eu é (3) uma experiência de si — denominemos assim a experiência da vida própria. É o substrato neural desta experiência que Antônio Damásio procura determinar, mediante uma hipótese que convoca e reúne os córtices sensoriais e somatossensoriais, associações motoras e sensoriais, regiões subcorticais. A sua coordenação exprimir-se-ia por um «documento narrativo não verbal», como Damásio sugestivamente escreve, respeitante a cada momento da experiência; ele não seria aliás exclusivo da experiência humana (O Erro de Descartes, 1995). Um tal substrato, por certo indispensável, não consiste —sublinhe-se — na posição do eu, que segundo Damásio requer a linguagem.
