Dor
(Gil1998)
Uma proposição-chave das Investigações Filosóficas resume o programa de Wittgenstein: «Um ‘processo interior’ requer critérios exteriores» (secção 580). Esta tese acha-se ligada ao «argumento contra a existência de uma linguagem privada» cujo exacto alcance é aliás difícil de determinar (como tem sido por muitos observado). Prima facie, tratar-se-ia de um argumento contra a possibilidade de uma linguagem inteiramente idiolectal (seríamos então tentados a perguntar se o exercício valerá a pena). Mas foi também interpretado como a negação pura e simples de estados puramente subjectivos (uma vez que a sua admissão conduziria a reconhecer uma linguagem privada) ou ainda, e mais razoavelmente, como a tese que os «critérios interiores» não bastam para determinar o conteúdo dos estados subjectivos. Qualquer questão sobre estes seria mal colocada, o «privado» deixa-se apreender apenas pela sua exteriorização (Äusserung).
Recordemos o célebre escaravelho da secção 293 das Investigações. O que «significa a palavra ‘dor’?». Pretender que o sei a partir da minha experiência privada leva a uma contradição pois se é então obrigado a aceitar que o mesmo valerá para toda a gente — ora, com que direito posso «generalizar este caso único» que sou eu? Dever-se-ia antes concluir, parece, que a dor consubstancia experiências diferentes conforme as pessoas. Wittgenstein propõe a seguir a analogia entre a consciência no sujeito e o escaravelho numa caixa. «Ninguém poderá olhar para dentro da caixa de qualquer outro, e cada um dirá que sabe o que é um escaravelho unicamente por ter visto o seu próprio.» Porém, não só é possível que cada caixa contenha algo diferente de um escaravelho mas pode ainda acontecer que o conteúdo da caixa, escaravelho ou outra coisa, se altere continuamente. E a caixa pode estar pura e simplesmente vazia. Por conseguinte, «a coisa na caixa não pertence de nenhum modo ao jogo de linguagem». O «modelo do ‘objecto e a sua designação’» — ou seja, o modelo referencial da linguagem— não é apropriado para construir «a gramática das expressões da sensação». Toda a investigação incidindo exclusivamente sobre o conteúdo subjectivo da dor se acha votada ao fracasso, sentimento da dor seria uma fórmula destituída de sentido.
Só a palavra e não a coisa conta nesta gramática da dor, pois «a essência de uma coisa é expressa pelo uso gramatical da palavra correspondente» (ibid., secção 371). Deste modo, «é com a linguagem que aprendeste o conceito ‘dor’» (ibid., secção 384, sublinhado de Wittgenstein). A dor dá-se no quadro do jogo que jogamos socialmente com a palavra «dor», experimentar uma dor é exprimir a dor e não descrever uma experiência por essência privada. A linguagem da sensação e do sentimento é pública. «Que razão temos para chamar ‘S’ o signo de uma sensação? Pois sensação é uma palavra da nossa linguagem habitual, não de uma linguagem que só para mim fosse inteligível» (ibid., secção 261). É portanto mediante critérios publicamente observáveis e em primeiro lugar linguísticos que se compreenderá a significação da dor.
Convém não obstante notar (é algo que passa muitas vezes despercebido) que o argumento de Wittgenstein se funda exclusivamente em uma analogia razoavelmente extravagante e sem alcance demonstrativo autêntico: pois pode bem igualmente acontecer que a caixa não esteja vazia e que a coisa que alberga — consciência ou escaravelho— não mude de natureza! (Note-se de passagem que a argumentação de Wittgenstein nas Investigações é por via de regra maciçamente persuasiva e muito pouco demonstrativa; é por isso algo extraordinário que tenha sido transformada num sistema quando não num artigo de fé.) A rejeição de uma aprendizagem privada da linguagem é por certo justificada. Mas ela conduzirá à tese que a experiência privada deve exteriorizar-se graças a um comportamento público para que seja permitido afirmar a sua existência, apenas se duas condições suplementares, muito fortes, lhe forem acrescentadas. Uma é semântica: a significação da experiência privada reduz-se aos termos do seu uso público (o comportamento), a outra, ontológica: a natureza da experiência em questão esgota-se nesse uso público ].
Ora, ao invés do que pretende uma certa koinê sociológica e filosófica, nenhuma das duas condições é evidente. À falta de melhor argumentação, parece mais verosímil admitir, com o senso comum, que a significação da dor se esteia numa experiência privada particular, e que ela constitui uma experiência universalmente partilhada e reconhecível como tal em si e no outro (deixando de lado as dificuldades lógicas do acesso às other tninds). O ónus da prova cabe ao defensor daquelas duas proposições. Elas são em tudo contra-intuitivas pois contradizem a experiência comum da consciência e da humanidade ].
