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O homem existe, é o que é

ECBD

Fica-se realmente desconcertado quando se pensa continuamente, com uma obsessão radical, que o homem existe, que é o que é – e que não pode ser diferente. Mas o que é, mil definições o denunciam e nenhuma se impõe: quanto mais arbitrárias são, mais válidas parecem. O absurdo mais etéreo e a banalidade mais pesada igualmente lhe convêm. A infinidade de seus atributos compõe o ser mais impreciso que possamos conceber. Enquanto que os animais vão diretamente a seu alvo, ele se perde em rodeios; é o animal indireto por excelência. Seus reflexos improváveis – de cujo relaxamento resulta a consciência – o transformam em um convalescente que aspira à doença. Nada nele é saudável, salvo o fato de tê-lo sido. Seja anjo que perdeu suas asas ou macaco que perdeu seu pelo, só pôde emergir do anonimato das criaturas graças aos eclipses de sua saúde. Seu sangue mal composto permitiu a infiltração de incertezas, de esboços de problemas, sua vitalidade maldisposta, a intrusão de pontos de interrogação e de sinais de admiração. Como definir o vírus que, corroendo sua sonolência, sobrecarregou-o de vigílias em meio à sesta dos seres? Que verme apoderou-se de seu repouso, que agente primitivo do conhecimento obrigou-o ao atraso dos atos, ao refreamento dos desejos? Quem introduziu a primeira languidez em sua ferocidade? Saído do fervilhar informe dos outros seres vivos, criou uma confusão mais sutil, explorou com minúcia os males de uma vida arrancada de si mesma. De tudo o que empreendeu para curar-se de si mesmo, desenvolveu uma doença mais estranha: sua “civilização” não é mais do que o esforço para encontrar remédios para um estado incurável – e desejado. O espírito murcha ao se aproximar da saúde: o homem é inválido – ou não é. Quando, depois de ter pensado em tudo, pensa em si mesmo – pois só chega a este ponto pelo desvio do universo e como último problema que se coloca –, fica surpreso e confuso. Mas continua preferindo seu próprio fracasso à natureza que fracassa eternamente na saúde.

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